quarta-feira, fevereiro 14

José Duro - 1873-1899



Numa tarde de Verão dos meus doze anos, enquanto aguardava com estóica resignação que as três horas de digestão fossem volvidas para poder ir para o rio, aproximei-me da velha estante de cerejeira onde pilhas de livros se acumulavam em montes, desordenadas. Lá fora, por entre o silêncio quente de uma tarde de fim de Julho na Serra do Montemuro, só se ouvia o cantar das cigarras e o murmurar do rio caindo em pequenas cascatas do açude e escoandosse em correntes malandras até ao longe, ao São Macário com as suas aldeias de xistos e os clarões vermelhosnas noites de incêndios da cor da madeira da estante. Por detrás dos vidros, para além das cortinas vermelhas, chamou-me a atenção um pequeno livro, de capa amarelada e bastantes folhas dobradas. O papel, áspero e rugoso desprendia uma ligeira poalha que se elevava por entre o pontilhado de raios de luz que os estores fechados deixavam passar. O título era conciso como breve foi a paixão que me assaltou pelo livro. Chamava-se Fel e o escritor era José Duro.
Nessa tarde levei-o para o rio, não fui para a poço da dorna, com a sua pequena praia, por receio das brincadeiras dos outros miudos e com medo de danificar o meu novo tesouro. Fui para o açude, um pouco mais abaixo, sentei-me sobre as rochas mornas, sob inclinados amieiros que no Inverno se cobriam de água até às copas, nadei solitário e li, li muito e muito depressa, como quem, febril, bate os dentes a velocidade inaudita, e perdi-me em sonhos onde velhas gravuras de Gustave Doré de uma velha edição de Le Corbeau de Edgar A. Poe passavam fugazes na memória sobrepondo-se com o rendilhado verde das ogivas de amieiros por cima de mim. Foi um momento mágico que nunca mais esqueci.
Voltei para casa e remexi a estante. Lá no fundo, meio esmagadas sob uma pilha de vidas de santos, repousavam as oprimidas Flores. Lio-o nessa noite, de calções do pijama sobre os lençois de linho, ouvindo o cantar dos grilos e o rumor do Paiva. Era bom, sem dúvida, mas nada se podia comparar à impressão causada por Fel no meu espírito.
Os anos foram passando até que, já com os meus dezoito anos, num depósito de livros em várias mãos que muito dificilmente passaria por ser um alfarrabista, descobri, entre livros dos cinco e fotonovelas, um livro de Dispersos de José Duro. Gostei, mas, mais uma vez, nada se comparava à poalha que se desprendera das folhas naquela tarde de Verão da minha infância.
Durante anos o mantive e o li, de tempos a tempos, algumas vezes apenas um poema, outras vários de seguida. Ainda hoje o leio e continuo a amar a sombria suavidade de um verbo consciente de uma morte próxima. Sou piegas? Provavelmente sim! Contudo ao longo dos anos sempre me acompanhou e sempre me revelou novas maneiras de sublimar em verso a lúcida dor do viver no morrer.



Em Busca


Ponho os olhos em mim, como se olhasse um estranho,
E choro de me ver tão outro, tão mudado…
Sem desvendar a causa, o íntimo cuidado
Que sofro do meu mal — o mal de que provenho.

Já não sou aquele Eu do tempo que é passado,
Pastor das ilusões perdi o meu rebanho,
Não sei do meu amor, saúde não na tenho,
E a vida sem saúde é um sofrer dobrado.

A minh’alma rasgou-ma o trágico Desgosto
Nas silvas do abandono, à hora do sol-posto,
Quando o azul começa a diluir-se em astros…

E à beira do caminho, até lá muito longe,
Como um mendigo só, como um sombrio monge,
Anda o meu coração em busca dos seus rastros…


Alvíssima


(Oração)

Como a Noite, Senhor,é linda
Com seus cabelos de luar…
Não chores mais, Lua bemvinda
Que me fazes também chorar…

Sorrisos do luar d’uma Caveira oca,
Sorrisos do luar enfeitiçando os brejos
Sorrisos do luar a angelizar a boca,
Sorrisos do luar onde escondi meus beijos…

Orações do luar dos lábios de nós ambos,
Orações do luar que os astros não rezaram,
Orações do luar a consagrar os tambos,
Orações do luar, das almas que noivaram.

Cabelos do luar, aveludados, frios,
Cabelos do luar em tranças latescentes;
Cabelos do luar — alvíssimas serpentes,
Cabelos do luar banhando-se nos rios…

Aromas do luar em revoadas francas,
Aromas do luar, a perfumar o céu…
Aromas do luar, sonâmbulos ao léu,
Aromas do luar, por noites todas brancas…

Brancuras do luar dispersas pelos montes…
Brancuras do luar — finos lençois de gelo…
Brancuras do luar, olhai o sete estrelo,
Brancuras do luar, a namorar as fontes…

Veludos do luar tecidos pela lua,
Veludos do luar, de lírios e de rosas…
Veludos do luar, ó vestes preciosas
Veludos do luar vestindo a noite nua…

Trémulos de luar — litanias peregrinas,
Trémulos de luar — ó harmonias cérulas,
Trémulos de luar, nas bocas aspérulas
Trémulos de luar, e lábios das boninas…

Tristezas do luar caindo-nos no peito,
Tristezas do luar, como um dobrar profundo…
Tristezas do luar anestisiando o Mundo,
Tristezas do luar, em lágrimas desfeito…

Lágrimas do luar da Lua aventureira,
Lágrimas do luar, da débil flor dos linhos…
Lágrimas do luar da mágua derradeira,
Lágrimas do luar, de moços e velhimhos…

Saudades do luar, na rama dos ciprestes,
Saudades do luar, há mochos a cantar…
Saudades do luar, são almas a chorar…
Saudades do luar, as podridões agrestes…

Velhinhos corações a verter sangue e máguas,
Velhinhos corações de mocidade negras,
Velhinhos corações — doridas toutinegras,
Velhinhos corações aos tombos pelas frágoas.

Vamos todos pedir à Lua sacrossanta
Na aspiração do Amor, na comunhão do Bem
Que o seu bendito olhar, o seu olhar de Santa,
Nos abençõe agora e para sempre amén!


in Antologia de Poetas Alentejanos



Doente

Que negro mal o meu! estou cada vez mais rouco!
Fogem de mim com asco as virgens d'olhar cálido...
E os velhos, quando passo, vendo-me tão pálido,
Comentam entre si: - coitado, está por pouco!...

Por isso tenho ódio a quem tiver saúde,
Por isso tenho raiva a quem viver ditoso,
E, odiando toda a gente, eu amo o tuberculoso.
E só estou contente ouvindo um alaúde.

Cada vez que me estudo encontro-me diferente,
Quando olham para mim é certo que estremeço;
E vai, pensando bem, sou, como toda a gente,
O contrário talvez daquilo que pareço...

Espírito irrequieto, fantasia ardente,
Adoro como Poe as doidas criações,
E se não bebo absinto é porque estou doente,
Que eu tenho como ele horror às multidões.

E amando doudamente as formas incompletas
Que às vezes não consigo, enfim, realizar,
Eu sinto-me banal ao pé dos mais poetas,
E, achando-me incapaz, deixo de trabalhar...

São filhos do meu tédio e duma dor qualquer
Meus sonhos de neurose horrivelmente histéricos
Como as larvas ruins dos corpos cadavéricos,
Ou como a aspiração de Charles Baudelaire.

Apraz-me o simbolismo ingénito das coisas...
E aos lábios da Mulher, a desfazer-se em beijos,
Prefiro os lábios maus das negregadas loisas,
Abrindo num ancelar de mórbidos desejos.

E é vão que medito e é em vão que sonho:
Meu coração morreu, minha alma é quase morta...
Já sinto emurchecer no crânio a flor do Sonho,
E oiço a Morte bater, sinistra, à minha porta...

Estou farto de sofrer, o sofrimento cansa,
E, por maior desgraça e por maior tormento,
Chego a julgar que tenho - estúpida lembrança -
Uma alma de poeta e um pouco de talento!

A doença que me mata é moral e física!
De que me serve a mim agora ter esperanças,
Se eu não posso beijar as trémulas crianças,
Porque ao meu lábio aflui o tóxico da tísica?

E morro assim tão novo! Ainda não há um mês,
Perguntei ao Doutor: - Então?...- Hei-de curá-lo...
Porém já não me importo, é bom morrer, deixá-lo!
Que morrer - é dormir... dormir... sonhar talvez...

Por isso irei sonhar debaixo dum cipreste
Alheio à sedução dos ideais perversos...
O poeta nunca morre embora seja agreste
A sua aspiração e tristes os seus versos!

A Caveira

Encontrei-a uma vez, a lívida caveira,
A rir, sinistramente, em doidas gargalhadas...
E pensei, nesse instante, ó almas torturadas!
Que ela seria em breve a minha companheira.

Depois vi, por meu mal, naquela ossada nua,
Que a Morte descarnara, em ânsias, brutalmente,
A imagem do meu ser, gelada e inconsciente,
Bebendo a luz do sol e as lágrimas da lua...

E tive ainda mais ódio a este viver tristonho,
Que arrasto, sem te ver, eu que por ti vivia,
Ó alma da minha alma e sonho do meu sonho!

Entretanto, começava o dia a esmorecer...
E eu fui-me perguntar à Sombra, que descia,
Se acaso não seriam horas de eu morrer!



(Gustave Doré)

O corvo

Quando o meu corvo, trêmulo, doente,
- Como quem sofre as minhas agonias -
Naquela noite veio, amargamente,
Dizer-me, soluçando, que morrias,

Percebi-lhe no olhar as nostalgias
da noite negra, sem luar, fremente,
Aonde as suas asas luzidias
Tomaram cor misteriosamente...

E à luz medrosa do candeeiro exausto,
Bebendo a minha dor num longo hausto
Mais triste que o soluço das nortadas,

Analisei a mágua de nós dois
Para ver qual sofria mais... depois...
Céus! Desatei, chorando, às gargalhadas!

Noivado Estranho

Quisera amar-te muito, ó Gémea do luar,
Num sonho excepcional, só de carícias feito,
Abendiçoar o céu na luz do teu olhar,
E a alma adormecer na curva do teu peito;

Quisera amar-te sempre, ó Doce como arminho
E casta como a pomba em seus arrulhos doces...
E, em troca deste amor, viver do teu carinho,
Que eu não vivia, não, Mulher, se tu não fosses!

Passar a vida inteira a ver-me nos teus olhos,
Apenas ter ventura em vez de ter abrolhos,
Beber o teu sorriso, e as máguas esquecê-las...

E quando a morte viesse e nos levasse a ambos
Realizarmos então os desejados tambos,
Na Igreja do Além... em meio das estrelas.

in Fel

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