quarta-feira, fevereiro 14

Agradecimentos a A BARRACA



Ontem foi um dia memorável, o telefone tocou, era a Sofia a perguntar-me se queria ser o acompanhante dela a uma sessão de leitura de poesia que ia ter lugar no BAR D'A BARRACA. Do conteúdo da mesma nada me disse inicialmente. À hora aprazada recebo uma sms: «Estou na tasca em frente de tua casa a comer algo! beijos. Fia» Levanto o traseiro da cama e sigo para lá, não sem antes me ter visto ao espelho e certificado que não tinha tido nenhum daqueles raptus de loucura estética que por vezes me levam a vestir uma camisa aos quadrados com um pull-over aos losangos. Comemos a sopinha de alface e o prego no pão e lá fomos a passo apressado para o Largo de Santos. Subimos e só quando lá cheguei é que me apercebi que se tratava de uma leitura de poesia brasileira. Sentei-me, a sala já estava escura daquela penumbra prenunciadora da função.
E foi bom, foi muito bom, deslumbrante mesmo, o modo como a sala se encheu de versos e histórias pairando nas nuvens de fumo recortadas no estrelado do fundo do palco. Senti que fiquei mais rico com a poesia de Antonio Cicero e Eucanãa Ferraz. E falou-se de poesia falando-se em poesia, e traçaram-se pontes com poetas portugueses: Luiza Neto Jorge, Ruy Belo, Gastão Cruz.Valeu a pena. Quero mais e, ainda que difícil, melhor.

PROGRAMA: Terça-feira, 13, 23.15h - Antonio Cicero, Eucanãa Ferraz, Maria do Céu Guerra e Pedro Cardoso sobem ao palco do Bar A Barraca para uma leitura de poesia que se prevê inesquecível.

Por razões estéticas sou mais sensível à poesia de Eucanãa Ferraz:




MORTE NO MAR

a T. S. Elliot

Lembro do rapaz que vi morrer na praia.
Os olhos abertos
- uma luz tão fria -
conchas espantadas que eram.
As mãos nada diziam de
anêmonas e navios.
Eu era um menino e
o azul verde da água.
Alto e belo, o afogado,
um capitão.

CONTO

para Eugénio de Andrade

Ainda não era menino
ou menina.
Tudo o que sabia
era o nome das cores.
Tudo o que sentia era
sede e fome.
Mas houve o verão em que
os barcos não regressaram. Foi quando,
apontando a linha do horizonte, a mãe
disse ao seu ouvido:
- és um homem.

MAR MÍNIMO

Grandes são os marinheiros e os poetas
que fazem caber em seus versos
a glória de horizontes
inventados ou vividos e que,
em grandíloquo e corrente estilo,
erguem cidades magníficas,
domam línguas, contam-nos pélagos e obeliscos.
Mas que fazer da escama
que sobrasse após os mares,
agarrada à roupa mais que
Veneza ou Viena à memória?
Escutai: é nessa minúscula opalina
que muitos sabem o poema
- mais duas ou três palavras
e o martelo certo de fazê-lo.
Rotas magníficas, não mais,
nem quantas as maravilhas
(e cessem com elas os iluminados que contam
de terras por si mesmas lavradias).
O mar pode ser isto: o ar
dentro da concha. Dentro:
o sargaço, o barco, o sargo,
a enseada. Onde poderá ser mais belo
e largo? A onda bravia
sobre um grão de mostarda.


in Martelo

LUGAREJO

O trem muge o longe.
Os vagões levam toneladas de horas
e astros enferrujados.

Bicho de ferro,
atravessando a facão o lombo do dia,
enchendo de metálica melodia
a vida homens dali.



18.05.1961

Nasci num lugar pobre,
onde o hospital era longe,
onde era longe a estrada
e os anjos não conheciam.

Nasci mês de maio,
azul de tardes macias,
de pai José, mãe Maria.

Batizaram-me: Terra Prometida.
Terra pobre, onde a felicidade
passa longe, mas daqui eu a vejo
e todo o meu corpo brilha.



GINÁSIO

Dias de muito sol e biscoitos de vento,
Colubiazol e aparelho nos dentes,
amigdalite e bagunça nos ônibus.



LIÇÃO DE CITOLOGIA

A célula
é a concha
dentro da pérola.



INICIAÇÃO

Conheço o primeiro livro de poemas:
Eu,
de Augusto dos Anjos.

Meu pai o tem
entre tratados de odontologia,
sem capa, velho,
enferrujado.

Livro misteriosíssimo,
no qual a morte é o superlativo
síntese de tudo,
absoluta como minha preguiça
de ir ao dicionário decifrar vocábulos.



PASSEIO

Na entrada do cinema
o drops pode ser misto ou de hortelã.
O misto tem gosto de frutas,
o de hortelã de hortelã.

As pessoas são muitas pessoas.

Dentro do cinema,
quanto tudo é escuro,
são todos anônimos
e mesmo em inúmeros,
assim como são,
ficam uma só pessoa,
nos escuro,
como se não fosse ninguém.



QUANDO EU MORRER

Pai,
quando eu morrer,
ficarei rosa
como uma menina
(você não deve ralhar
ou querer que eu minta
porque tudo será exato
sem mesmo carecer de ensaio).

Quando eu morrer sou tranqüilo
como um príncipe
que beijasse a boca do nada
(você vai achar bonito
esse quadro de tintas longínquas).

Pensarão que sou uma menina,
um barco,
um pombo.

Todo o meu doce virá à tona.

Veja pai,
sou um mineral,
intacto e sem passado.

ASSIM

Da solidão nasce o silêncio.

Posso vê-lo
entre nós.

Estáticos,
estamos assim
desde que, calados, assistimos dormir
o últmo pedido.

Canções e braços
mudaram-se ao país das pedras
e a tua presença é uma casa
sem portas.

Silêncio.

As águas
não chegam até à praia.

in Livro Primeiro

por razões de justiça objectiva, aqui vão alguns poemas de Antonio Cicero:



GUARDAR

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em um cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

MEDUSA

Cortei a cabeça da Medusa
por inveja. Quis eu mesmo o olhar
sem olhos que vê e se recusa
a ser visto e desse modo faz
das demais pessoas pedras: pedras
sim, preciosas, da mais pura água,
onde o olhar mergulha até a medula,
diáfanas, translúcidas, cegas.
Refleti muito, antes. Na verdade
estes meus olhos provêm de carne
de mulher, não do nada imortal
da divindade. Como encarar
com eles a Górgona? Mas mal
pensando assim, lembrei ser mortal
ela também: e seu pai é um deus
do mar mas eu sou filho de Zeus.
Mesmo assim não quis enfrentá-la olhos
nos olhos. Peguei emprestado o espelho
da minha irmã e adentrei o cômodo
da Medusa de soslaio, vendo
tudo por reflexos: o seu corpo
em terceiro plano, atrás de heróis
de pedra e dos meus olhos esconsos
em primeiríssimo. Eis o corte
da lâmina especular: do lado
de cá eu, sem corpo, a olhar; do outro
lado eu, olho olhado, olho enviesado
e rosto e corpo entre muitos corpos,
um dos quais o dela. A mesma lâmina
decapitou-a também: do lado
de cá guardo seu olhar e faina;
e lá jaz seu vulto desalmado.
Mas nada é tão simples. Do pescoço
cortado nasceu um cavalo de asas
(é que o deus do mar a engravidara)
e mergulhou no horizonte em fogo
crepuscular. Dizem que, no monte
Hélicon, seu coice abriu uma fonte.
A ser não sendo, de madrugada
levanto com sede dessa água.

ALGUNS VERSOS

As letras brancas de alguns versos me espreitam
em pé no fundo azul de uma tela atrás
da qual luz natural adentra a janela
por onde ao levantar quase nada o olhar
vejo o sol aberto amarelar as folhas
da acácia em alvoroço: Marcelo está
para chegar. E de repente, de fora
do presente, pareço apenas lembrar
disso tudo como de algo que não há de
retornar jamais e em lágrimas exulto
de sentir falta justamente da tarde
que me banha e escorre rumo ao mar sem margens
de cujo fundo veio para ser mundo
e se acendeu feito um fósforo, e é tarde.

Por razões de honestidade intelectual:

a) não se indicam as referências dos poemas de Antonio Cicero por ignorância nossa e por não virem mencionados no site do autor

b) os poemas foram recolhidos dos sites dos autores:
EUCANÃA FERRAZ: http://eucanaaferraz.com.br/poesia.htm
ANTONIO CICERO: http://www2.uol.com.br/antoniocicero/
constantes do blog do BAR D'A BARRACA: http://www.bar-a-barraca.blogspot.com/

Por razões de agradecimento:
a) Obrigado Sofia
b) Obrigado ao Bar d'A Barraca
c) Obrigado Eucanãa Ferraz
d) Obrigado Antonio Cicero

Por me estar a apetecer fazer um brinde:

QUE A RUA DA MISERICÓRDIA DA CULTURA VOLTE A SER A RUA DO MUNDO!

1 comentário:

Sofia Freire d'Andrade disse...

Meu Quixote de collants,

Quanta tamanha intimidação em escrever-te...mas fazendo-me de corajosa, tal qual mulher sem soutien, tinha de responder á tua graça e loucura.
Obrigada eu por seres o meu Quixote doido, louco, lirico, lindo, e tudo o que não me ocorre agora com a emoção da escrita, mas tb nunca é tarde lembrar que os teus pés podem pousar em segurança pois tens-me a teu lado, e deixar a loucura prender-se um pouco á beleza da realidade :)