terça-feira, dezembro 12

24 horas na vida de duas beatas

Acordou, pigarreou, estendeu o braço roliço e enfiou a mão sapuda por debaixo da cama de onde retirou um pífio penico rosa onde escarrou abundantemente. Depois, benzendo-se, desfiou as orações da manhã dando graças a Deus por este lhe ter permitido assistir a mais um nascer do Sol sem que o bicho papão tivesse atentado à sua tão preciosa virgindade e dirigiu-se à casa de banho, onde mãos experientes mergulharam na água tépida do bidé e vigorosamente esfregaram os íntimos recessos procurando lavar o pecado na origem numa espécie de extase que tocava ao frenesim. Enfiou a custo os vestidos procurando cobrir a flacidez pecaminosa das carnes abundantemente descaídas e dirigiu-se à cozinha onde, enquanto esperava que a cevada estivesse pronta ― preferia a cevada ao café por causa das flatulências, do colesterol e da tensão ―, devorou três pães recheados com grossas fatias de manteiga, queijo e marmelada. Entrou no quarto da Patroa onde escancarou, com delicada subtileza paquidérmica, as portadas da janela.
― Bom dia minha Senhora. Dormiu bem?
― Graças a Deus, Geraldina, graças a Deus!
― E a todos os santinhos! ―rematou com a beatitude de um olhar revirado para o empíreo e a prontidão de uma rotina que descontextualizava as expressões e as fazia cair numa pouco cristã vacuidade. Retirou-se para ir buscar um pequeno tabuleiro chinês de loja dos trezentos onde um pachorrento dragão assustadoramente sorria virando e revirando os olhos sobre o fundo negro da imitação barata de laca. Sentada e parcialmente afundada na cova que a sua imponente mole tinha traçado na cama, a Patroa começou por dar graças a Deus por mais esta benção da terra, após o que devorou as torradas e os biscoitos bebendo, com pequenos sorvos, a malga imensa de cevada e leite magro ― para não engordar ― condimentada com três colheres de açucar.
― Hoje sonhei com Nossa Senhora! ― declarou, com a boca cheia, a Patroa enquanto dava uma dentada num biscoito.
―É sinal de que já tem um lugar no Céu! É o que eu digo, a minha Senhora é uma Santa! ― concluía sarnosamente a criada enquanto, com um pulinho, se sentava na cama ficando com os cotos papudinhos a que chamava pernas pendurados no ar.
O relógio da torre bateu pausadamente as nove horas pelo que tão luminoso quadro foi interrompido para dar lugar ao quotidiano ritual dos preparativos para a missa. Cuidadosamente reuniram os terços e as coroas, as mantilhas e os missais e, vestidas de azul como o vestido da Nossa Senhora que a Patroa tinha beatificamente visto em sonhos, lá atravessaram o adro onde arcanas tílias rescendiam e entraram pela porta lateral na velha igreja de Pinheiro. Faltavam ainda três quartos de hora para a função pelo que esta se encontrava vazia. O ranger da porta e a entrada das duas criaturas veio perturbar a monástica modorra dos morcegos que, libertando-se das traves que sustentam o coro, começam a esvoaçar em largas quão imprevisíveis evoluções. Entraram, persignaram-se, ajoelharam-se e começaram a desfiar um longo rosário de novenas, jaculatórias e ladaínhas enquanto, a pouco e pouco, uma série de figuras negras, vergadas sob o peso dos véus de breu e de uma obscura Fé feita de temores e superstição, iam entrando no templo e, tementes e trementes, teciam trémulas e soluçantes orações. Os morcegos, revendo-se no negro dos véus, recolhiam piedosamente às traves do coro onde, com excepção de algum irrequieto esticar de asas, permaneciam imóveis. Entretanto, defronte da agonia eclesiástica da Virgem, as duas lá iam desfiando sucessivas Avé-Marias.
― Avé Maria, olha-me para aquela saia, cheia de graça, parece que aquela sem vergonha da Gata já se esqueceu dos desmanchos da filha, o Senhor esteja convosco, toda a noite com o paspalho, ... ― ao que a Geraldina, em êxtase místico, respondia: ― Santa Maria, é uma badalhoca, Mãe de Deus, mas porque é que esta gente vem à missa, rogai por nós, pecadores, que calhordas, agora e na hora da nossa morte. Amén.
O ronco abafado e soluçante do carro do padre veio interromper este quadro que, não sendo pio, tinha a católica virtude de inspirar piedade. Paramentado, as longas vestes caindo-lhe curvilineamente ao longo da protuberância abdominal, lá subiu, arquejando, com os braços contrictamente cruzados e o olhar recolhido de lobo manhoso disfarçado de pastor, ao altar seguido pelo sacristão com andar bamboleante de ave palmípede e a convicção íntima de estar a ganhar uma assinatura vitalícia para a primeira fila da celeste plateia. Começava a função: ― Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
E as morcegas persignaram-se enquanto, com beatífico ar, exclamavam revirando rotineiramente o olhar para as traves onde os seus congéneres repousavam: ― Amén!
E a missa lá foi prosseguindo, por entre cochichos e comentários sussurrados sobre a glória eterna e as vigarices dos vizinhos, numa modorrenta ladaínha em que o bandido do Serafim, que tinha mudado os marcos nas extremas dos pinhais, convivia alegremente com o bom ladrão e a mulher perdida da Cidália recebia lições das Virgens Loucas e dava lições de coquetterie a Susana. Chegou por fim a consagração e eis que, coreografadas como uma claque de football a fazer a hola, uma vaga preta, com exclusão desses bandidos desses hereges dos lisboetas que não têm resperito a Deus, se abate de joelhos, com o olhar onde cabia o peso dos pecados do mundo, sobre os apoios puídos dos bancos da frente. O padre dá lentamente a comunhão à longa procissão de breu, volta a guardar os santos utensílios no sacrário e, após um momento de recolhimento, dá início aos avisos:
― Amanhã a missa na Ermida vai ser às onze, o maternário dos porcos vai estar no sábado de manhã à porta da loja do Corrécio para vacinar os cães, a missa vespertina vai ser às seis em vez das sete por via da mudança da hora!
Lentamente, com as almas limpas e o paraíso espelhado no olhar, as beatas saem da igreja desfilando recolhidas sob a longa nave de caixotão onde miríades de santos se mortificam olhando para os decotes e verificando quotidianamente no espectáculo dos seios pendulares a veracidade das teorias de Newton.
No adro, por baixo das tílias, rogam-se os trabalhadores aos dias e meios-dias, a seco e a comer. Enquanto a Patroa debita as últimas orações, Geraldina, promovida a Patroa, vai apalavrando homens num cirandar constante. Depois, é vê-las subir a longa e velha calçada que as leva a casa felizes pela contrição das almas e saciadas por tão pia função.
O portão rangeu com um estrídulo esganiçado lento a que logo se sobrepôs o surdo ladrar de uma grande cadela serra da Estrela que reinava no recinto da casa. Branca, de cantaria nas janelas, a casa erguia-se centenária, ensombrada pelos espíritos e pela herança de gerações inteiras que se entranharam nos caixotões de madeira do salão como nas talhas dos altares da capela ou nas paredes de espesso granito beirão. O espírito de um passado ilustre e a herança de várias gerações a lutarem contra a decadência do Liberalismo, da República, do Estado Novo habitavam o local. Aos ilustres sobrevieram os proscritos, depois os humilhados e finalmente os resignados. Mas a resignação pode ser industriosa e fecunda por, aceitando uma situação, se tirar dela o melhor partido; como pode deslizar para a bovinidade pachorrenta de fêmea embronquecida a quem se passa a mão pelo pêlo e de quem tudo se obtém. Tal era a Patroa, velha solteirona frustrada a quem a pia superstição de ser católica levava a achar não valer a pena interrogar-se ou ler a Bíblia porque só um tal pensamento era já uma heresia, o pôr em causa algo de inquestionável: a Fé. E a Fé, essa era um amontoar atabalhoado de interpretações literais das passagens que o sr. prior lia na missa, de histórias ouvidas na infância e que se simplificaram com a estupidificação e o anquilosamento mental da mulher a quem a Geraldina nunca se esquecia de se dirigir como Minha Senhora.
―E minha Senhora viu aqueles bandidos dos comunistas a comungarem? Aquilo era com um bregueiro naqueles costados!
― Vi sim, Geraldina, vi sim, mas deixa que o Senhor escreve direito por linhas tortas e ninguém pode ser bom católico se for comunista! Até vem na Bíblia que no Juízo Final os malditos vão para a esquerda do Senhor e os bem-aventurados para a direita!
E lá vão entrando, com a Geraldina aos saltos diante da cadela aos guinchos: ― Sape! Vai-te embora! Ai o diabo da cadela que eu pego num bregueiro!, enquanto a Patroa, a sacolejar a flacidez mental e física, se apresta a abrir a porta, não fosse a cadela sujar as roupagens de piedade para as devoções públicas de Fé nas quais, com o passar do tempo se foram sucessivamente acumulando várias décadas de vocação para ave do paraíso até serem interrompidas, no final dos anos setenta, com a consciência de que ia ficar solteirona. Sabiamente industriada pelo isolamento e pela sarnosice da criada manhosa e paciente, a Patroa cria-se uma pia figura, depois a beata bem aventurada e finalmente passara ao glorioso estado de santa e mártir em vida. O seu carácter inatamente bovino foi, ele também, um importante adjuvante nesse lento processo ao qual não era igualmente estranho o tratar-se de filha mais nova e extemporânea e que sempre fora mimada e desculpabilizada.
― Aquilo é que é um bandido, deixar a minha Senhora por aquela farrusca só pelas carreiras do pai dela. Um sem vergonha. Um comunista de um bandido que, quando morrer, vai logo para o Inferno direitinho como um fuso. Mas olhe, minha Senhora, assim até fica melhor. Fica Virgem como Nossa Senhora.
― Os homens são todos uns bandidos. Não te cases, minha filha, não te cases!
― Não, minha Senhora! Nem pensar nisso é bom! ― : dizia a Geraldina a quem uma velha herdada sem herdeiros directos alegrava os horizontes.
Enquanto a criada preparava um almoço de enfarta-brutos em quantidades industriais no velho fogão a lenha, a Patroa embrutecia em frente de uma televisão que debitava programas imbecis. Sorvia-os a todos com a avidez com que engolia os nacos de carne a que chamavam bifes, a sopa grossa de batatas e couves com unto, os molhos de tasca por cima dos bifes como por cima do puré de batata que formava estranhas ilhas misteriosamente hirtas no meio de um mar de cor indefinidamente parda entre o castanho e o laranja.
― Então, minha Senhora, está a gostar? ― perguntava a Geraldina com sorriso matreiro onde os troncos negros decapitados que lhe cobriam as bochechas fartas e a larga papada balofa, fruto de décadas de dietas omnívoras, faziam lembrar esses casos de hirsutismo que se exibiam dantes nas feiras como o incrível, o único, o verdadeiramente assombroso caso da mulher barbuda. Sem a nobreza da personagem du maître des maîtres da juventude do narrador ― sim, porque a história do autor é bem outra ―, Geraldina fazia da deformação física (inata, provocada por gula e sofreguidão insaciáveis, mas não induzida) uma questão pessoal e ostentava-a com o mesmo orgulho chocarreiro e ostensivo com que certos membros da comunidade gay recusam uma igualdade de direitos e deveres, devida a todos os níveis, para se ghettizarem como diferentes e marcarem essa diferença como um marco intransponível. Era uma espécie de Desleixadamente Obesos Pride Parade vê-la descer, com pequenos saltos de trancas curtas, em formato de pirâmide de papos invertida se quisermos usar uma bela imagem poética ou de cotos de porco se formos mais realisticamente prosaicos, as escaleiras de pedra saída dos socalcos da quinta. Cada saltinho era acompanhado de um movimento ondulatório de banhas crescentes que, se fosse filmado, poderia servir para explicar às criancinhas o fenómeno do tsunami, desde o epicentro, passando pelo rápido desenvolvimento até ao último e destrutivo estertor, lá onde o mar acaba e a terra começa, o que, para o leitor mais atento, será por altura das bochechas violentamente estremecidas da sapudinha Geraldina.
― Estou, Geraldina, está muito bom, mas eu não posso comer muito ou fico gorda! ― dizia a Patroa enfiando na boca mais uma garfada do lacrimejante e untuoso puré de batata.
― Minha Senhora, isto são só produtos nossos, são as nossas batatinhas, o nosso azeitinho, o porquinho, as cenourinhas, as cebolinhas, é tudo nosso! Não pode fazer mal nem engordar! Sim, porque esta é uma casa farta. Aqui ninguém passa fome porque a Geraldina faz tudo e trata de tudo! Não é minha Senhora?
― É sim, Geraldina, é sim, tu é que me vales. Se não fosses tu não sei como seria. Tu é que me vales.
― E a Senhora está muito bem. Está muito rija, muito coradinha, faz ver às novas! Olhe, eu é que estou muito mal, muito agoniada, com muitas dores! É do fígado! ― dizia com voz dolente e plangente, carregando com ar sofredoramente violento sobre o estómago enquanto repetia pela terceira vez até encher o prato de três grossos tracanhazes de boa carne de porco e de um outro vago e obscuro arquipélago de puré (e esta é só para ver se os leitores que conseguiram chegar até aqui o fizeram apenas pela força da inércia ou se estão atentos ao que para trás se escreveu e certamente identificaram no arquipélago anterior a realística imagem com que classifiquei a culinária segundo Geraldina, cujo receituário, embora aspirasse ao de une grande tocque, nunca fora além do grau de um grande barrete).
E assim, numa troca de galanteios e mimos constante, onde se cruzavam reflexões pias e perguntas da Geraldina sobre o conteúdo dos programas da manhã, narrações simplificadamente deturpadas pelo carácter esclerosado da Patroa e anuimentos com as conclusões lisérgicas a que a Minha Senhora chegara, se passava o almoço.
A loiça do almoço repousava na pia de pedra branca enquanto ambas, diante de um televisor sem som, jiboiavam deitadas na cama que o muito peso abaulara e rezavam ululantes o terço e as orações da tarde. Depois, a Patroa adormecia encostada ao espaldar da cama enquanto Geraldina continuava a ver com ar amodorrado e sonolento as imagens afónicas da televisão. E chegava ao entardecer com a Geraldina a ir dar de comer às galinhas e a Patroa a acordar para devotamente acompanhar o terço na onda média da emissora da multinacional vaticana, inchada de decibéis e coros rotineiramente gravados, como rotineiro e mecânico era para a Patroa o lento desfiar das contas.
Jantavam cedo para não ir para a cama muito cheias. Durante o jantar, após várias laudatórias sínteses dos assuntos que as tinham mantido intelectualmente ocupadas durante o dia, glosava-se, até à exaustão, o tema: ― Ai a minha Senhora é muito fina! Faz ver às novas!
E lá se escoava o pratinho de gorduroso caldo e a malguinha de leite com cevada e biscoitos, seguida da costumeira ajuda com que a Geraldina quotidianamente propinava a Patroa e que consistia no dar-lhe um puxão para que, ao levantar, ela conseguisse libertar os fartos e anafados quadris da prisão dos encostos para braços da cadeira. Enquanto Geraldina lava a loiça, a Patroa debita monocórdica e maquinalmente o terçinho da noite.
A noite cai, solene e fria sobre as serranias, com a limpidez transparente de um céu estrelado, manchas mais escuras denunciam na paisagem a presença de uma serra, de um monte, de um precipício como, aqui e além, perdidos no escuro, pontos luminosos, isolados ou aos magotes, acusam a presença de um casal como de uma aldeia. Ao fundo, o ruído espumoso e rumorejante do rio marca o regular compasso onde apenas o cair de uma pinha, o piar da coruja ou o raspar da cortiça de duas árvores introduzem uma nota dissonante. Na casa, um silêncio frio e bafiento plana pelos corredores e salas privos de vida, ecoa nas paredes e nas cómodas altas, no escuro, nos lustres, nas teias de aranha. Uma porta chia e um vulto sonâmbulo atravessa o corredor. O sono agita-se em delíquios agitados de bacantes.
O galo canta. Uma primeira luz avermelha o alto da serra. A vida continua com a sintético rumor de um escarro que cai dentro de um pífio penico rosa.

Rua da Boavista em Lisboa, 2006-12- 12