terça-feira, dezembro 12

24 horas na vida de duas beatas

Acordou, pigarreou, estendeu o braço roliço e enfiou a mão sapuda por debaixo da cama de onde retirou um pífio penico rosa onde escarrou abundantemente. Depois, benzendo-se, desfiou as orações da manhã dando graças a Deus por este lhe ter permitido assistir a mais um nascer do Sol sem que o bicho papão tivesse atentado à sua tão preciosa virgindade e dirigiu-se à casa de banho, onde mãos experientes mergulharam na água tépida do bidé e vigorosamente esfregaram os íntimos recessos procurando lavar o pecado na origem numa espécie de extase que tocava ao frenesim. Enfiou a custo os vestidos procurando cobrir a flacidez pecaminosa das carnes abundantemente descaídas e dirigiu-se à cozinha onde, enquanto esperava que a cevada estivesse pronta ― preferia a cevada ao café por causa das flatulências, do colesterol e da tensão ―, devorou três pães recheados com grossas fatias de manteiga, queijo e marmelada. Entrou no quarto da Patroa onde escancarou, com delicada subtileza paquidérmica, as portadas da janela.
― Bom dia minha Senhora. Dormiu bem?
― Graças a Deus, Geraldina, graças a Deus!
― E a todos os santinhos! ―rematou com a beatitude de um olhar revirado para o empíreo e a prontidão de uma rotina que descontextualizava as expressões e as fazia cair numa pouco cristã vacuidade. Retirou-se para ir buscar um pequeno tabuleiro chinês de loja dos trezentos onde um pachorrento dragão assustadoramente sorria virando e revirando os olhos sobre o fundo negro da imitação barata de laca. Sentada e parcialmente afundada na cova que a sua imponente mole tinha traçado na cama, a Patroa começou por dar graças a Deus por mais esta benção da terra, após o que devorou as torradas e os biscoitos bebendo, com pequenos sorvos, a malga imensa de cevada e leite magro ― para não engordar ― condimentada com três colheres de açucar.
― Hoje sonhei com Nossa Senhora! ― declarou, com a boca cheia, a Patroa enquanto dava uma dentada num biscoito.
―É sinal de que já tem um lugar no Céu! É o que eu digo, a minha Senhora é uma Santa! ― concluía sarnosamente a criada enquanto, com um pulinho, se sentava na cama ficando com os cotos papudinhos a que chamava pernas pendurados no ar.
O relógio da torre bateu pausadamente as nove horas pelo que tão luminoso quadro foi interrompido para dar lugar ao quotidiano ritual dos preparativos para a missa. Cuidadosamente reuniram os terços e as coroas, as mantilhas e os missais e, vestidas de azul como o vestido da Nossa Senhora que a Patroa tinha beatificamente visto em sonhos, lá atravessaram o adro onde arcanas tílias rescendiam e entraram pela porta lateral na velha igreja de Pinheiro. Faltavam ainda três quartos de hora para a função pelo que esta se encontrava vazia. O ranger da porta e a entrada das duas criaturas veio perturbar a monástica modorra dos morcegos que, libertando-se das traves que sustentam o coro, começam a esvoaçar em largas quão imprevisíveis evoluções. Entraram, persignaram-se, ajoelharam-se e começaram a desfiar um longo rosário de novenas, jaculatórias e ladaínhas enquanto, a pouco e pouco, uma série de figuras negras, vergadas sob o peso dos véus de breu e de uma obscura Fé feita de temores e superstição, iam entrando no templo e, tementes e trementes, teciam trémulas e soluçantes orações. Os morcegos, revendo-se no negro dos véus, recolhiam piedosamente às traves do coro onde, com excepção de algum irrequieto esticar de asas, permaneciam imóveis. Entretanto, defronte da agonia eclesiástica da Virgem, as duas lá iam desfiando sucessivas Avé-Marias.
― Avé Maria, olha-me para aquela saia, cheia de graça, parece que aquela sem vergonha da Gata já se esqueceu dos desmanchos da filha, o Senhor esteja convosco, toda a noite com o paspalho, ... ― ao que a Geraldina, em êxtase místico, respondia: ― Santa Maria, é uma badalhoca, Mãe de Deus, mas porque é que esta gente vem à missa, rogai por nós, pecadores, que calhordas, agora e na hora da nossa morte. Amén.
O ronco abafado e soluçante do carro do padre veio interromper este quadro que, não sendo pio, tinha a católica virtude de inspirar piedade. Paramentado, as longas vestes caindo-lhe curvilineamente ao longo da protuberância abdominal, lá subiu, arquejando, com os braços contrictamente cruzados e o olhar recolhido de lobo manhoso disfarçado de pastor, ao altar seguido pelo sacristão com andar bamboleante de ave palmípede e a convicção íntima de estar a ganhar uma assinatura vitalícia para a primeira fila da celeste plateia. Começava a função: ― Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
E as morcegas persignaram-se enquanto, com beatífico ar, exclamavam revirando rotineiramente o olhar para as traves onde os seus congéneres repousavam: ― Amén!
E a missa lá foi prosseguindo, por entre cochichos e comentários sussurrados sobre a glória eterna e as vigarices dos vizinhos, numa modorrenta ladaínha em que o bandido do Serafim, que tinha mudado os marcos nas extremas dos pinhais, convivia alegremente com o bom ladrão e a mulher perdida da Cidália recebia lições das Virgens Loucas e dava lições de coquetterie a Susana. Chegou por fim a consagração e eis que, coreografadas como uma claque de football a fazer a hola, uma vaga preta, com exclusão desses bandidos desses hereges dos lisboetas que não têm resperito a Deus, se abate de joelhos, com o olhar onde cabia o peso dos pecados do mundo, sobre os apoios puídos dos bancos da frente. O padre dá lentamente a comunhão à longa procissão de breu, volta a guardar os santos utensílios no sacrário e, após um momento de recolhimento, dá início aos avisos:
― Amanhã a missa na Ermida vai ser às onze, o maternário dos porcos vai estar no sábado de manhã à porta da loja do Corrécio para vacinar os cães, a missa vespertina vai ser às seis em vez das sete por via da mudança da hora!
Lentamente, com as almas limpas e o paraíso espelhado no olhar, as beatas saem da igreja desfilando recolhidas sob a longa nave de caixotão onde miríades de santos se mortificam olhando para os decotes e verificando quotidianamente no espectáculo dos seios pendulares a veracidade das teorias de Newton.
No adro, por baixo das tílias, rogam-se os trabalhadores aos dias e meios-dias, a seco e a comer. Enquanto a Patroa debita as últimas orações, Geraldina, promovida a Patroa, vai apalavrando homens num cirandar constante. Depois, é vê-las subir a longa e velha calçada que as leva a casa felizes pela contrição das almas e saciadas por tão pia função.
O portão rangeu com um estrídulo esganiçado lento a que logo se sobrepôs o surdo ladrar de uma grande cadela serra da Estrela que reinava no recinto da casa. Branca, de cantaria nas janelas, a casa erguia-se centenária, ensombrada pelos espíritos e pela herança de gerações inteiras que se entranharam nos caixotões de madeira do salão como nas talhas dos altares da capela ou nas paredes de espesso granito beirão. O espírito de um passado ilustre e a herança de várias gerações a lutarem contra a decadência do Liberalismo, da República, do Estado Novo habitavam o local. Aos ilustres sobrevieram os proscritos, depois os humilhados e finalmente os resignados. Mas a resignação pode ser industriosa e fecunda por, aceitando uma situação, se tirar dela o melhor partido; como pode deslizar para a bovinidade pachorrenta de fêmea embronquecida a quem se passa a mão pelo pêlo e de quem tudo se obtém. Tal era a Patroa, velha solteirona frustrada a quem a pia superstição de ser católica levava a achar não valer a pena interrogar-se ou ler a Bíblia porque só um tal pensamento era já uma heresia, o pôr em causa algo de inquestionável: a Fé. E a Fé, essa era um amontoar atabalhoado de interpretações literais das passagens que o sr. prior lia na missa, de histórias ouvidas na infância e que se simplificaram com a estupidificação e o anquilosamento mental da mulher a quem a Geraldina nunca se esquecia de se dirigir como Minha Senhora.
―E minha Senhora viu aqueles bandidos dos comunistas a comungarem? Aquilo era com um bregueiro naqueles costados!
― Vi sim, Geraldina, vi sim, mas deixa que o Senhor escreve direito por linhas tortas e ninguém pode ser bom católico se for comunista! Até vem na Bíblia que no Juízo Final os malditos vão para a esquerda do Senhor e os bem-aventurados para a direita!
E lá vão entrando, com a Geraldina aos saltos diante da cadela aos guinchos: ― Sape! Vai-te embora! Ai o diabo da cadela que eu pego num bregueiro!, enquanto a Patroa, a sacolejar a flacidez mental e física, se apresta a abrir a porta, não fosse a cadela sujar as roupagens de piedade para as devoções públicas de Fé nas quais, com o passar do tempo se foram sucessivamente acumulando várias décadas de vocação para ave do paraíso até serem interrompidas, no final dos anos setenta, com a consciência de que ia ficar solteirona. Sabiamente industriada pelo isolamento e pela sarnosice da criada manhosa e paciente, a Patroa cria-se uma pia figura, depois a beata bem aventurada e finalmente passara ao glorioso estado de santa e mártir em vida. O seu carácter inatamente bovino foi, ele também, um importante adjuvante nesse lento processo ao qual não era igualmente estranho o tratar-se de filha mais nova e extemporânea e que sempre fora mimada e desculpabilizada.
― Aquilo é que é um bandido, deixar a minha Senhora por aquela farrusca só pelas carreiras do pai dela. Um sem vergonha. Um comunista de um bandido que, quando morrer, vai logo para o Inferno direitinho como um fuso. Mas olhe, minha Senhora, assim até fica melhor. Fica Virgem como Nossa Senhora.
― Os homens são todos uns bandidos. Não te cases, minha filha, não te cases!
― Não, minha Senhora! Nem pensar nisso é bom! ― : dizia a Geraldina a quem uma velha herdada sem herdeiros directos alegrava os horizontes.
Enquanto a criada preparava um almoço de enfarta-brutos em quantidades industriais no velho fogão a lenha, a Patroa embrutecia em frente de uma televisão que debitava programas imbecis. Sorvia-os a todos com a avidez com que engolia os nacos de carne a que chamavam bifes, a sopa grossa de batatas e couves com unto, os molhos de tasca por cima dos bifes como por cima do puré de batata que formava estranhas ilhas misteriosamente hirtas no meio de um mar de cor indefinidamente parda entre o castanho e o laranja.
― Então, minha Senhora, está a gostar? ― perguntava a Geraldina com sorriso matreiro onde os troncos negros decapitados que lhe cobriam as bochechas fartas e a larga papada balofa, fruto de décadas de dietas omnívoras, faziam lembrar esses casos de hirsutismo que se exibiam dantes nas feiras como o incrível, o único, o verdadeiramente assombroso caso da mulher barbuda. Sem a nobreza da personagem du maître des maîtres da juventude do narrador ― sim, porque a história do autor é bem outra ―, Geraldina fazia da deformação física (inata, provocada por gula e sofreguidão insaciáveis, mas não induzida) uma questão pessoal e ostentava-a com o mesmo orgulho chocarreiro e ostensivo com que certos membros da comunidade gay recusam uma igualdade de direitos e deveres, devida a todos os níveis, para se ghettizarem como diferentes e marcarem essa diferença como um marco intransponível. Era uma espécie de Desleixadamente Obesos Pride Parade vê-la descer, com pequenos saltos de trancas curtas, em formato de pirâmide de papos invertida se quisermos usar uma bela imagem poética ou de cotos de porco se formos mais realisticamente prosaicos, as escaleiras de pedra saída dos socalcos da quinta. Cada saltinho era acompanhado de um movimento ondulatório de banhas crescentes que, se fosse filmado, poderia servir para explicar às criancinhas o fenómeno do tsunami, desde o epicentro, passando pelo rápido desenvolvimento até ao último e destrutivo estertor, lá onde o mar acaba e a terra começa, o que, para o leitor mais atento, será por altura das bochechas violentamente estremecidas da sapudinha Geraldina.
― Estou, Geraldina, está muito bom, mas eu não posso comer muito ou fico gorda! ― dizia a Patroa enfiando na boca mais uma garfada do lacrimejante e untuoso puré de batata.
― Minha Senhora, isto são só produtos nossos, são as nossas batatinhas, o nosso azeitinho, o porquinho, as cenourinhas, as cebolinhas, é tudo nosso! Não pode fazer mal nem engordar! Sim, porque esta é uma casa farta. Aqui ninguém passa fome porque a Geraldina faz tudo e trata de tudo! Não é minha Senhora?
― É sim, Geraldina, é sim, tu é que me vales. Se não fosses tu não sei como seria. Tu é que me vales.
― E a Senhora está muito bem. Está muito rija, muito coradinha, faz ver às novas! Olhe, eu é que estou muito mal, muito agoniada, com muitas dores! É do fígado! ― dizia com voz dolente e plangente, carregando com ar sofredoramente violento sobre o estómago enquanto repetia pela terceira vez até encher o prato de três grossos tracanhazes de boa carne de porco e de um outro vago e obscuro arquipélago de puré (e esta é só para ver se os leitores que conseguiram chegar até aqui o fizeram apenas pela força da inércia ou se estão atentos ao que para trás se escreveu e certamente identificaram no arquipélago anterior a realística imagem com que classifiquei a culinária segundo Geraldina, cujo receituário, embora aspirasse ao de une grande tocque, nunca fora além do grau de um grande barrete).
E assim, numa troca de galanteios e mimos constante, onde se cruzavam reflexões pias e perguntas da Geraldina sobre o conteúdo dos programas da manhã, narrações simplificadamente deturpadas pelo carácter esclerosado da Patroa e anuimentos com as conclusões lisérgicas a que a Minha Senhora chegara, se passava o almoço.
A loiça do almoço repousava na pia de pedra branca enquanto ambas, diante de um televisor sem som, jiboiavam deitadas na cama que o muito peso abaulara e rezavam ululantes o terço e as orações da tarde. Depois, a Patroa adormecia encostada ao espaldar da cama enquanto Geraldina continuava a ver com ar amodorrado e sonolento as imagens afónicas da televisão. E chegava ao entardecer com a Geraldina a ir dar de comer às galinhas e a Patroa a acordar para devotamente acompanhar o terço na onda média da emissora da multinacional vaticana, inchada de decibéis e coros rotineiramente gravados, como rotineiro e mecânico era para a Patroa o lento desfiar das contas.
Jantavam cedo para não ir para a cama muito cheias. Durante o jantar, após várias laudatórias sínteses dos assuntos que as tinham mantido intelectualmente ocupadas durante o dia, glosava-se, até à exaustão, o tema: ― Ai a minha Senhora é muito fina! Faz ver às novas!
E lá se escoava o pratinho de gorduroso caldo e a malguinha de leite com cevada e biscoitos, seguida da costumeira ajuda com que a Geraldina quotidianamente propinava a Patroa e que consistia no dar-lhe um puxão para que, ao levantar, ela conseguisse libertar os fartos e anafados quadris da prisão dos encostos para braços da cadeira. Enquanto Geraldina lava a loiça, a Patroa debita monocórdica e maquinalmente o terçinho da noite.
A noite cai, solene e fria sobre as serranias, com a limpidez transparente de um céu estrelado, manchas mais escuras denunciam na paisagem a presença de uma serra, de um monte, de um precipício como, aqui e além, perdidos no escuro, pontos luminosos, isolados ou aos magotes, acusam a presença de um casal como de uma aldeia. Ao fundo, o ruído espumoso e rumorejante do rio marca o regular compasso onde apenas o cair de uma pinha, o piar da coruja ou o raspar da cortiça de duas árvores introduzem uma nota dissonante. Na casa, um silêncio frio e bafiento plana pelos corredores e salas privos de vida, ecoa nas paredes e nas cómodas altas, no escuro, nos lustres, nas teias de aranha. Uma porta chia e um vulto sonâmbulo atravessa o corredor. O sono agita-se em delíquios agitados de bacantes.
O galo canta. Uma primeira luz avermelha o alto da serra. A vida continua com a sintético rumor de um escarro que cai dentro de um pífio penico rosa.

Rua da Boavista em Lisboa, 2006-12- 12

quinta-feira, novembro 23

A lenda do Rei Pescador

Levantou-se e preparou-se cuidadosamente como convém a um homem de Igreja. O fato, de tons escuros, condizia com a solenidade hierática e severa das paredes do quarto despojado onde se encontrava. Uma cama escura encimada por um crucifixo cujo Cristo de madeira tinha passado à reforma e do qual só os três cravos ferrujentos guardavam a memória, uma cómoda alta de madeira que o tempo escurecera e um roupeiro a que faltava uma porta constituiam toda a mobília. Dirigiu-se à janela e banhou-se na luz branca e enevoada de um dia de Primavera. Abriu a janela e inspirou avidamente o ar sentindo-se estonteado com o formigueiro que este causou nas suas narinas habituadas ao bafio e ao mofo que escorriam pelas paredes e lhe invadiam o corpo e a alma. Voltou-se, caminhou alguns passos até à cómoda de onde retirou alguns chumbos de pesca de cinquenta gramas, fio de pesca, um par de tesouras, um martelo e um desses velhos estojos de óculos de plástico. Devidamente apetrechado voltou para a janela onde se entreteve a bater os chumbos até formar estreitas placas de textura irregular. Depois, com a ponta da tesoura, furou as placas e atou-lhes o fio de pesca de molde a que este conjunto caísse perpendicularmente desde o seu ombro até ao chão. Sorriu contente com o aprumo do utensílio. Sentou-se e roeu avidamente um resto de chocolate preto deliciando-se com o gosto amargo e espesso que este lhe deixava na boca. Após o breve repasto, recortou a bolsa de óculos de modo a que esta formasse um pequeno estojo para as placas de chumbo, após o que cobriu as placas de cola para ratos, guardou-as juntamente com um trapo velho e uma pequena garrafa de álcool, enfiou as chaves da mota no bolso e saiu de casa. Parou no jornal da vila para tomar um café e ler as secções dos jornais dedicadas ao crime e ao desporto. Pagou a conta e saiu sem ligar aos insinuantes e (e)ternos sorrisos da filha do dono do bar. Entrou na Igreja de São João Baptista enquanto o Padre pronunciava o derradeiro Ite missa est. Persignou-se devotamente e ajoelhou-se ao fundo por entre um grupo de beatas que manuseavam perpetuamente a mesma conta de um orgasmático rosário em histéricos delírios religiosos. A sua figura severa, circundada por xailes e mantilhas negramente curvados inseria-se sem destoar na hierática rigidez daquele eclesiástico recanto. Esperou pacientemente que o fadário do terço findasse e que as beatas se retirassem. Depois, com o ar grave que convém a um penitente, levantou-se e dirigiu-se ao Altar de Santa Rita de Cássia. Ajoelhou-se, persignou-se e, retirando os chumbos do bolso, escolheu o mais fino. O sacerdote saiu da sacristia e, reparando no recolhimento e na compustura do devoto, pensou que Deus, nas suas infinitas glória e misericórdia, não permitia que a religião e a devoção se extinguissem. E o chumbo lá ia descendo vazio e subindo até à ranhura carregado de notas. Os sinos da Igreja anunciaram uma nova missa pelo que abandonou a Igreja não sem antes se ter benzido e rezado uma oração pelas graças recebidas.
***
O Juíz, severo na sua toga, fitava-o com olhos críticos e voz grave e pausada. Eduardo manteve a compustura que o caracterizava e respondeu escandindo as palavras. Afirmou ser um homem de bem, temente a Deus e fiel aos princípios do novo catecismo e da reforma fiscal. Acrescentou ainda que, na estricta observância dos princípios religiosos e éticos que sempre o tinham norteado, nada mais pretendia do que proceder à retenção na fonte e cobrar a sisa devida sobre a compra de quartos no Paraíso. No fim de contas, não era no novo catecismo que o não pagar impostos era considerado um pecado?

segunda-feira, novembro 13

Homenagem



O SENTIMENTO D'UM OCCIDENTAL

A Guerra Junqueiro

I
AVE MARIAS

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Ha tal soturnidade, ha tal melancholia,
Que as sombras, o bulicio, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de soffrer.

O ceu parece baixo e de neblina,
O gaz extravasado enjôa-me, perturba;
E os edificios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se d'uma côr monotona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando á via ferrea os que se vão. Felizes!
Occorrem-me em revista exposições, paizes:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações sómente emmadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao hombro, enfarruscados, seccos;
Embrenho-me, a scismar, por boqueirões, por beccos,
Ou érro pelos caes a que se atracam botes.

E evoco, então, as chronicas navaes:
Mouros, baixeis, heroes, tudo resuscitado!
Lucta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jámais!

E o fim da tarde inspira-me; e incommoda!
De um couraçado inglez vogam os escaleres;
E em terra n'um tinir de louças e talheres
Flammejam, ao jantar, alguns hoteis da moda..
N'um trem de praça arengam dois dentistas;
Um tropego arlequim braceja n'umas andas;
Os cherubins do lar fluctuam nas varandas;
Ás portas, em cabello, enfadam-se os logistas!

Vasam-se os arsenaes e as officinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E n'um cardume negro, herculeas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vem sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, á cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas,

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã á noite, a bórdo das fragatas;
E apinham-se n'um bairro aonde miam gatas,
E o peixe pôdre géra os focos de infecção!

II
NOITE FECHADA
Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e creanças,
Bem raramente encerra uma mulher de «dom»!

E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão morbido me sinto, ao accender das luzes;
Á vista das prisões, da velha sé, das cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abysma.

A espaços, illuminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas egrejas, n'um saudoso largo,
Lançam a nodoa negra e funebre do clero:
N'ellas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela Historia eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,
Muram-se as construcções rectas, eguaes, crescidas;
Affrontam-me, no resto, as ingremes subidas,
E os sinos d'um tanger monastico e devoto.

Mas, n'um recinto publico e vulgar,
Com bancos de namoro e exiguas pimenteiras,
Bronzeo, monumental, de proporções guerreiras,.
Um épico d'outr'ora ascende, n'um pilar!
E eu sonho o Colera, imagina a Febre,
N'esta accumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectraes recolhem os soldados;
Inflamma-se um palacio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavallaria
Dos arcos dos quarteis que foram já conventos;
Edade-média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampeões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir ás montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobresaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas d'ellas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assumpto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; ás mesas de emigrados,
Ao riso e á crua luz joga-se o dominó.

III
AO GAZ
E saio. A noite peza, esmaga. Nos
Passeios de lagedo arrastam-se as impuras.
Ó molles hospitaes! Sae das embocaduras
Um sopro que arripia os hombros quasi nús.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver cirios lateraes, ver filas de capellas,
Com santos e fieis, andores, ramos, velas,
Em uma cathedral de um comprimento immenso.

As burguezinhas do Catholocismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de hysterismo.

N'um cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exhala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

E eu que medito um livro que exarcebe,.
Quizera que o real e a analyse m'o dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines ólha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistraes, salubres e sinceros,
A esguia diffusão dos vossos reverberos,
E a vossa pallidez romantica e lunar!

Que grande cobra, a lubrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns chales com debuxo!
Sua excellencia attráe, magnetica, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquella velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticaes, a duas tintas. Perto,
Escarvam, á victoria, os seus mecklemburguezes.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentaes seccam nos mostradores;
Flócos de pós de arroz pairam suffocadores,
E em nuvems de setins requebram-se os caixeiros,

Mas tudo cança! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrellas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléos as armações fulgentes.

«Dó da miseria!... Compaixão de mim!...»
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homemzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de latim!

IV
HORAS MORTAS
O tecto fundo de oxygenio, d'ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vem lagrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a chimera azul de transmigrar.

Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cáe nas lages, ás escuras:
Collocam-se taipaes, rangem as fechaduras,
E os olhos d'um caleche espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silencio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longiqua flauta..
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castissimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhos! Que de sonhos ageis,
Pousando, vos trarão a nitidez ás vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
N'umas habitações translucidas e frageis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frótas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquaticas seguir!

Mas se vivemos, os emparedados,
Sem arvores, no valle escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de soccorro ouvir estrangulados.

E n'estes nebulosos corredores
Nauseam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distancia, os dubios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, osseos, febris, errantes,
Amarelladamente, os cães parecem lobos.

E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as immoraes, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

E, enorme, n'esta massa irregular
De predios sepulchraes, com dimensões de montes,
A Dôr humana busca os amplos horisontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
Cesário Verde
na edição de Silva Pinto

domingo, novembro 12

Salmo por mais um Natal


Salmo por mais um Natal




Sentada em cima do plaid que a protege do frio e da humidade da charneca, Kathleen aguarda o regresso de Angus. Conhecem-se desde crianças, juntos percorreram as colinas do Eire, juntos se esconderam por detrás das sebes quando, no regresso das aulas, os unionistas os perseguiam, juntos nadaram nus, nas noites de plenilúnio, nos ribeiros do Conemara, juntos seguiram para Derry quando se casaram, juntos fizeram um filho que já morreu, juntos choraram sobre o corpo do filho morto por uma carga a cavalo, juntos leram a biografia de Michael Collins e jejuaram com Bobby Sands e, esperando o dia em que voltarão a seguir a estrada juntos, Kathleen vai-se cobrindo de verde como as pedras da charneca.
Victoria dá um último beijo à filha que a fixa com dois límpidos olhos de àgua onde apenas as leves estrias vermelhas que os raiam denunciam o estado de agitação que a percorre. Depois de a incitar a ter coragem e de lhe compor a fita vermelha com que prende os longos cabelos louros da filha, Victoria agarra na mão desta, respira fundo e, olhando fixamente um ponto imaginário diante de si, começa a caminhar com uma passada larga e decidida. Hellen vai acompanhando a mãe e, dando umas olhadelas furtivas, tentando descortinar o que a espera nos duzentos metros que se sucedem ao virar da esquina. A montra da padaria reflecte confusamente o avermelhado da aurora que se mistura com as luzes dos jipes do exército. Dobrado esse cabo que nunca viria a ser da boa esperança, começam a descer ao longo de um esófago de capacetes negros por detrás do qual se ouve o vozear ácido da multidão ensandecida. De repente voa uma garrafa... Sentada à frente da central telefónica, Hellen recorda entre lágrimas as últimas recordações do dia em que, à limpidez dos seus olhos de água, sucederam as profundidades dos abismos.
Ahmed olha o deserto diante de si e, por entre alguns goles que lentamente vai dando no seu chá de menta, poisa a mão no ombro de Youssuf, o seu filho mais novo, começa a falar de um dia, passados são já tantos anos, em que um homem louro entrou de rompante pela casa dos seus pais. Tinha sido empurrado de roldão para debaixo de uma cama de onde tinha assistido ao espancamento dos seus pais. Deitados no chão com os olhos vítreos em fácies tumefactos como a janela por onde vira os homens da aldeia serem obrigados a urinar para cima dos cabos descarnados da alta tensão. Youssuf não sabe ainda que, quando o sol descer no horizonte, homens velados entrarão em sua casa, há-de ver o seu pai espancado e decapitado e o sangue escorrer da garganta cortada de sua mãe violada em nome de um Deus ignoto.
Benjamin contempla os montes Golam através das grades da prisão. Médico de formação e humanista por vocação, viu a sua vida truncada pelo fanatismo dos pais e pela obrigatoriedade de prestar serviço nos colonatos. Viu crianças de pedras na mão e crianças incorporadas nas calçadas pelo rodado dos carros, pais que conduzem os filhos a tirar um derradeiro retrato com uma faixa verde na cabeça e um colete explosivo, e homens cujo desespero os leva à morte. Porque hebreu, lembrou-se de David e Golias e recusou-se a ser um filisteu. A lei de Moisés prescreve a defesa de roubar e de matar. Benjamin é levado a corte marcial por desobediência sem saber que, em retaliação ao enésimo raid sobre Jenin, um míssil do Hezbollah há-de atingir o pequeno posto militar onde se encontra detido.
Roque corre por entre os carros tentando não ser atingido. Leva na mão o berimbau e no olhar o pânico. Tinha acordado com sede e, no regresso da bica, assistira à chegada dos jipes da polícia. As brancas paredes da Candelária tingem-se de vermelho como um lençol nupcial arvorado em estandarte de uma virgindade perdida. Corre Roque! Corre...
Wang baixa-se e tenta esconder-se. O olhar vigilante e atento dos auxiliares varre a sala onde homens e mulheres, de branco vestidos, deambulam com um olhar perdido. Estudante universitário, Wang protestou e exprimiu o seu descontentamento. Depois da repressão, e por uma questão de coerência, não se refugiou num exílio dourado em Paris, nos Estados Unidos ou na Formosa. Wang esquiva-se, ou tenta fazê-lo, aos tratamentos prescritos com a convicção íntima de que só um louco ficaria a aguardar os militares em casa depois dos acontecimentos da Cidade Proibida.
Sebastião olha através da janela que alguém, piedosamente, colocou sobre o seu retrato. Lá fora, por entre as pedras brancas, a erva cresce e as flores teimam em despontar. Mas Sebastião apenas olha e já as não consegue cheirar. É um olhar vago e perdido como o daquele dia em que as tropas avançaram ensandecidas e a todos empurraram para os jardins da morte. E Sebastião aí ficou, testemunha e testemunho da vida passada, da morte presente e da vida que vai despontando em cada fio de erva e que pacientemente observa através da janela da sua lápide.
Steve vagueia pela cidade com uma manta pelas costas e uma garrafa de álcool metílico dentro do saco de papel. Lentamente, passo após passo, Steve desce a Vª Avenida e arrasta a sua miséria diante das opulentas ourivesarias da diáspora. Tem que ir às traseiras dos grandes armazéns recolher os cartões que o irão proteger da humidade da noite. Steve há-de morrer essa noite, como um monarca, deitado no colchão ortopédico de um passeio e tendo as estrelas por baldaquino; mas, ao contrário dos ourives, do seu leito de morte fitará o Infinito.
Mary-Lu vagueia por entre as ruas eufóricas de Pataya Beach. O olhar dirige-se implorante ao turista tentando esconder a sua idade avançada. Sabe que tem em casa uma família para sustentar e que, com dezasseis anos, já não é procurada como quando tinha treze. Um senhor de cabelos brancos, dólares na mão e passaporte australiano leva-a para um hotel. Nada lhe é pedido fisicamente e Mary-Lu sente-se amada por alguém que apenas lhe fala docemente ao ouvido. Diz-lhe que gosta dela, que ainda tem que resolver alguns assuntos mas que a quer levar, juntamente com a sua filha, para a Austrália. Mary-Lu separa-se do homem com um pequeno embrulho, um bilhete de avião para Sidney, algum dinheiro e um sorriso nos lábios sem saber que uma tal decisão a vai levar a uma vida escoada através das grades do Bangkok Hilton enquanto a sua filha irá engrossar os bordeis de Pataya.
Ramon segue vozeando no meio dos outros rapazes. A sua voz e a sua estatura conferem-lhe um estatuto de primazia entre os meninos da rua de Santiago. O bando, capitaneado por Ramon, dirige-se para o mercado. Lestamente, os bolsos vazios enchem-se de comida e as faces de sorrisos. Depois do pasto comum, Ramon afasta-se do grupo para que este o não veja chorar pelos pais que nunca conheceu.
Sentado por entre as pedras onde alguns fios de erva teimam em despontar, Tatonka olha para o avô. À volta destes o silêncio impera. De repente, evocados pela voz do ancião, o tropear de uma manada de bisontes atravessa as pradarias da alma, a erva viçosa verdeja após o degelo, a águia, mensageira do espírito, plana entre os deuses e os homens. Tatonka ergue os olhos e apenas consegue descortinar o voo espiralado de um abutre sobre a terra queimada da reserva.
Felícia segue o homem que a retirou do orfanato de Timisoara e a levou para Bucareste, com uma boneca nas mãos e um chupa-chupa na boca, sem saber que irá ser vendida pela melhor oferta a um mercador de escravas.
A paz ruidosa da floresta é abalada por um silêncio obscuro. Dois tiros secos prostram por terra Chico e a mulher. Sobre os cadáveres deixados insepultos pelos sicários dos fazendeiros do pantanal, a terra nunca possuída encarregou-se de edificar uma catedral verdejante.
Num cinema de Lisboa, um órfão é obrigado a praticar a felação. As famílias, bem pensantes e com a consciência tranquila, sorvem avidamente as imagens que alguns persistem em passar nas televisões.

MAGNIFICAT


Lisboa, 7 de Dezembro de 2002

O rio corria, imutável e contínuo, por entre as fragas ...

O rio corria, imutável e contínuo, por entre as fragas que, com uma solene tranquilidade, assistiam à sua passagem. A garganta, que ora se espraiava em amenos bosques de amieiros ora se estreitava em agrestes e abruptas penedias, era, de longe a longe, interrompida pelo doce remanso de uma levada ou pela oblíqua graça de um açude. João desceu o íngreme caminho que o conduziu a um pequeno recanto onde as águas eram mais profundas, estendeu a toalha, despiu-se, acendeu um cigarro e sentou-se gozando o sol e a brisa fresca que corria ao longo do vale. No ar pairava o perfume da resina dos pinheiros e o contínuo rumor dos insectos. De longe a longe, por entre os amieiros, descia um melro de água que, passando à tona da água, devorava, com fulmínea rapidez, alguns dos muitos insectos que evoluíam à superfície. Outras vezes, era o baque surdo provocado pelo salto de uma truta que vinha interromper os seus pensamentos. Por entre as ervas altas da margem passavam libélulas com reflexos azulados. Apagou a beata nas pedras e guardou-a numa pequena caixa metálica: a natureza não se compadecia com os seus públicos vícios e prazeres privados. Levantou-se e entrou lentamente na água. Enquanto os pés sentiam o contacto com os seixos e o areão do fundo, João sentiu o benfazejo prazer da água que lhe subia lentamente pelas pernas acima até à altura dos joelhos. Pequenos peixes afastavam-se ao mínimo movimento e voltavam curiosos quando ele parava e as suas pernas se assemelhavam a dois troncos parcialmente imersos. O sol tinha aquecido a água. Mergulhou e, com vigorosos movimentos circulares dos braços, passou rasante ao fundo que tão bem conhecia. Passou serpenteando por entre as pedras e emergiu um pouco mais adiante. Respirou e olhou o rio que, na sua placidez, transportava algumas folhas secas que volteavam como barcaças loucas num bailado dervixe para, logo à frente, onde o rio se estreita e ganha velocidade em pequenas cascatas e rápidos, mergulharem num verde e vítreo espelho que reflectia a ponte centenária de granito. Deixou-se levar pela corrente, juntamente com as folhas, enquanto boiava sob a volta majestosa da ponte. Gritou e gozou o eco da sua voz multiplicado pelo arco. Depois, com braçadas cadenciadas, dirigiu-se aos contrafortes da ponte e sentou-se no penedo que apenas emergia nos anos de menor caudal e contemplou os riscos esverdeados deixados pelas cheias dos Invernos passados. Alguns guinchos interromperam as suas contemplações. Voltou para a água e, nadando de costas, gozou o dúplice prazer que lhe proporcionavam a água fresca no dorso e o sol no peito. Subiu para a pedra e secou-se com a toalha. Olhou para a outra margem. Por entre os amieiros, duas gerações de emigrantes conviviam alegremente. Os progenitores iam pachorrentamente despejando cervejas em torno de um tacho dessa especialidade gastronómica de enfarta-brutos que dá pelo nome de macarrão guisado com chouriço de colorau. Os filhos, estranhas criaturas obesas oriundas de um bidonville do bacio parisiano, discutiam numa alegre algaraviada onde os dis donc conviviam joiosamente com uma forma de expressão capaz de fazer corar os menos pudicos chatos do mais sebento dos cavalos da GNR. Um rebento chapinhava na água enquanto guinchava estridentemente. A mãe, elegantemente vestida com um fato de banho de estranhas cores violáceas e umas sandálias verde alface de plástico transparente ― ambos comprados nos grandes magazinos ― gritou para a filha mais velha: ― “Virginie, faz atenção, olha que o Mathieu não sabe najar!” Esta última, entretida a comentar os saliências pudicas do primo Benoito com a amiga Aicha, enquanto devoravam alegremente um pacote de comida de plástico com aroma de batata, presunto, queijo, mentol e banana fez ouvido de mercador. ― “Virginie, ou fazes gafa ao teu fréro ou eu caço-te a gola!” ―: verberou, apoplética na sua flácida opulência de fémea bronca, a mãe. E Virginie lá deixou de olhar para as partes pudibundas do primo Benoito elegantemente contidas numa tanga para, de mau grado, ir buscar o irmão que, entretanto, tinha escorregado nos limos de uma pedra, gratado os chavelhos e aberto as goelas numa invulgar demonstração de poder vocal. João sentiu-se incomodado e tentou neutralizar o chinfrim com a audição das Variações Goldberg, servindo-se dos auriculares. Contudo, do outro lado do rio, um estranho aparelho com mais luzes do que uma árvore de Natal começou a poluir o ambiente com os últimos êxitos de um cantor pimba com nome de bola de rugby a que se seguiu um best of de Linda de Suza. Na ausência de Virginie, ocupada a dar bisous nos chavelhos do fréro, Aicha, como jovem liberada que era, ousou um topless onde o tchador se conjugava com a parte de baixo de um bikini colorido como a capa de um disco de música das Caraíbas em versão Sarcelles. Foi então que João, não sabendo se a náusea que o invadia era provocada pela descarga de uma suinicultura ou pela visão que o acometia, se vestiu e bateu em retirada. Pelo caminho encontrou um automóvel de enormes proporções com a bandeira da carbonária em volta dos encostos de cabeça e um terço pendurado no retrovisor. Subiu lentamente o caminho íngreme que o conduziu à velha casa de granito que, desde há três séculos, servia de abrigo e berço à sua família. Mudou-se, pegou na corrente que servia de trela a Gilda ― uma cadela enorme, fruto do cruzamento entre um pastor alemão e um serra da estrela ―, e foi passear com esta pelos pinhais. Enquanto voltava para casa, parou, fez algumas festas na cabeça da sua companheira e, de forma terna, disse-lhe: ― “Gosto de ti porque és autêntica!”. Ao fundo, no vale, o rio corria, imutável e contínuo, por entre as fragas que, com uma solene tranquilidade, assistiam à sua passagem.
Agosto de 2003

A mercearia do Sr. Ângelo Custódio

A mercearia do Sr. Ângelo Custódio


Saiu da Igreja com um passo inseguro e o reflexo dos mistérios gozosos espelhado no olhar. A mantilha preta sobre os ombros e o véu de renda sobre a cabeça davam-lhe um ar de rata de sacristia que só encontrava rival nas botinas da queirosiana Juliana. Atravessou o sagrado passando por entre as tílias e os plátanos do adro, ladeou o cemitério onde a forma verticalmente longilínea dos ciprestes indicava vagamente uma via ascensional futura. Benzeu-se, juntamente com as suas companheiras de ladainhas, novenas e má-língua, ao passar diante das alminhas postas na encruzilhada onde, há já mais de dez anos, um marido adúltero tinha sido morto pelo seu congénere enganado. — “Aquilo é que é uma badalhoca!” — exclamou a D. Mimi referindo-se à causadora de tão grande falatório. —“As mulheres são a encarnação do Diabo!” — sentenciou a D. Ester recordando-se vagamente do sermão que o Senhor Abade tinha acabado de propinar sobre uma figura obscura chamada Eva. — “Lá isso são! Mas o coitado do Manuel lá foi prestar contas a Deus só por ser um bocadinho maluco por mulheres. Não é assim minha senhora?” — perguntou a criada Etelvina volvendo beatificamente os olhos ao empíreo. — “Temos que prometer cinco rosários, uma ida a Fátima e uma resma de ladainhas a Nossa Senhora....” — “Abençoado seja o Vosso nome!” — interromperam em coro esganiçado e devotamente polifónico as restantes beatas. — “... para evitar o fim do mundo!” — concluiu a D. Fernanda cruzando beatificamente as mãos sobre o peito. E lá foram andando, fazendo trup, trup como o burro d’O Malhadinhas, até à vista do cruzeiro onde, entre persignações e um último comentário sobre a sem-vergonha da filha do Zé Maria do Prado que tinha tido o descaramento de ir à Santa Missa com uma saia dois milímetros e meio por cima do joelho, se despediram.
D. Fernanda, curvada pelas mortificações impostas pelos exercícios espirituais lá seguiu, com o seu passo miudinho e histericamente nervoso, na direcção da mercearia do Sr. Ângelo Custódio onde se encontravam iguarias capazes de elevar um pobre mortal que não seja figura de proa ao Paraíso. Avistou finalmente a augusta porta onde os bacalhaus pendurados lateralmente lhe lembraram as asas protectoras de um Anjo disposto a acolhê-la no seu regaço. Ladeou os sacos de feijão e grão-de-bico, e, tecendo profundas considerações teologais sobre a tripa seca que se encontrava empilhada ao lado das leguminosas, entrou pigarreando para anunciar a sua presença. O Sr. Ângelo Custódio interrompeu por um momento a ínclita tarefa de afiar o lápis de duas cores com a longa unha negra do polegar para, ostentando um sorriso e uma afabilidade celestiais, a saudar: — “Bom dia D. Fernanda! Já viu o bonito dia que Deus nos deu?” — “Seja feita a Sua vontade per omnia sæcula sæculorum!” — “Ámen!”: apressou-se a responder o Sr. Ângelo Custódio elevando as mãos de modo a formar uma coroa em torno do cartaz onde se encontrava escrito um “Por culpa de alguém, não se fia a ninguém!” destinado a demover alguns caloteiros de pecar por avareza. — “Então D. Fernanda, em que é que a posso ajudar?”: perguntou o Sr. Ângelo Custódio esfregando as sapudas mãos. — “Ai Sr. Ângelo, eu nem sei. Talvez um meio-litro dessas ervilhas que são tão redondinhas que até parecem as contas de um rosário...” — “...e só de vê-las faz bem à alma!”: apressou-se a concluir o merceeiro que já conhecia a antífona. — “Tenho aí um chouriço capaz de salvar um pecador.”: insinuou o vendedor. — “Nem pense nisso que estamos na Quaresma!”: exclamou horrorizada a D. Fernanda com um tremor na voz. — “Talvez um bacalhauzinho?” — “Ai Sr. Ângelo, tenha vergonha e não me proponha coisas que cheiram a luxúria e a devassidão!”: recusou D. Fernanda possuída por um sentimento de temor divino. — “O atum é em óleo ou em azeite?” — “Em azeite D. Fernanda.”: apressou-se a esclarecer o merceeiro. — “Então está bem porque me faz lembrar o Monte das Oliveiras. Arranje-me duzentos gramas, se faz favor.” — “Tenho aí uns figos nacionais que são uma bênção para as hemorróidas!” — “Eu até nem costumo comer figos porque a figueira é a árvore em que Judas se enforcou, mas se o Sr. Ângelo me garante que são nacionais... Arranje-me aí um quarto de quilo por favor.” E o merceeiro lá ia aviando quando a D. Fernanda, abrindo o porta-moedas em que guardava o terço, os trocos e a coroa, reparou que não tinha trazido dinheiro. — “Ai Sr. Ângelo, que vergonha, esqueci-me do dinheiro em casa. E agora?” — “Não se preocupe que eu assento e quando puder passa para pagar.” —: disse, com um sorriso o merceeiro. E, sem se esquecer de agradecer, a D. Fernanda lá foi para casa enquanto o Sr. Ângelo Custódio, que não tinha computador nem rol das almas, lá ficou a escrever no seu “deve e haver”.

Porquê o refúgio dos cães?

O Refúgio dos Cães



Porquê o refúgio dos cães?

Porque apesar de ser um velho lugar comum a história do "Quanto mais conheço os homens mais gosto do meu cão!", a verdade é que, de dia para dia, a cada minuto que passo nesta sociedade de parecenças, na "vanity fair" pindérica que é um Portugal de tamancos e telemóvel novo, jantarinhos pirosos no restaurante chinês1 entre coleguinhas de trabalho que se suportam durante uma semana e o usam, num misto de ostentação social e poupança com o psicoterauta de grupo, como uma forma catártica socialmente bem-vista e bem-aceite, cada dia mais me revejo menos nesta Lisboa de revistas cor-de-rosa2, de gente que vive a vida dos outros por viver na mais ínfima das pobrezas e a única verdadeiramente mísera e miserável: a de vida própria, de escândalos abafados, de jornalistas que vendem a banha da cobra feita com o sangue dos outros, de putas que vendem o sangue e a imagem para que pindéricos jornalistas [façam] cócegas à opinião pública, de barbeiros de Sevilha que são especialistas em tudo e ensaboam de pseudo-cultura politicamente tendenciosa as moles infectamente amorfas e esponjosas3, por tudo isto, pelo asco que tudo isto me mete, a cada momento sinto uma maior empatia com os cães, com os vadios que pedem, aceitam ou recusam a carícia que lhes faço, com os remediados com casa, comida e sem afectos, com os maltratados, mutilados, prisioneiros, com os a quem a pretensa e onanística superioridade humana pretendeu moldar à sua imagem e roubou ou deturpou a identidade, com os felizes, com os viciados. Este é o meio em que me revejo e, se por aí houver alguém que comigo se reveja neles que entre e será bem vindo4, se com eles empatia não sentir5 que se apresse a sair!



Obrigado

1 - Se for paquistanês, tailandês, indiano, italiano, grego, mexicano ou uma tasquinha de Alfama vai dar ao mesmo.

2 - Não é boca política apenas porque esses nem merecem a minha crítica mas apenas o meu desprezo. E isto não tem cor, é geral!

3 - Qualquer semelhança entre a ficção e a vida real, não sendo fruto do acaso e completamente assumida, é mesmo real. Se duvidar belisque-se!

4 - Mesmo que ache que eu só escrevo merdas. (Isto é melhor ficar em nota porque, como os portugueses acham que as notas são umas borlazinhas com que se adornam os textos para ficarem mais bonitos ou com pinta de cultos, há sempre a vaga hipótese de, não lendo tal classificação não tenham a lucidez de a adoptar.)

5 - Apesar de achar que eu sou um gajo genial e que escreve umas coisas dignas do nome de escrita. (Isto é melhor ficar em nota porque, como os portugueses acham que as notas são umas borlazinhas com que se adornam os textos para ficarem mais bonitos ou com pinta de cultos, há sempre a vaga hipótese de, não lendo tal classificação não tenham a lucidez de a adoptar.)