quinta-feira, fevereiro 15

Guido Crepax - estilista do prazer, paladino da dor, desenhador e ilustrador italiano - 1933-2003



Emmanuelle



Conheci Guido Crepax muito novo, lá para os meus quinze anos, em casa de um amigo, e, por muito que me custe confessá-lo a mim mesmo, já não me recordo de que album se tratava. Creio que era a Valentina mas não estou certo. Sei que na altura amei e odiei o desenho. Amei porque a estilização dos corpos nus marcados pelo capricho que transforma um traço negro sobre uma folha branca em algo de uma sensual fluidez reprimida no apertado abraço de um corpete não me foi estranho. Era como ver a fluidez das joias de Lalique aplicadas a uma nova estética e a uma imagética à qual não podia deixar de ser sensível o então muito medievalmente designável Cavaleiro das Hormonas Saltitantes e actual subscritor destas linhas. Odiei porque não tinha ainda bebido o doce fel que liga intimamente a dor e o prazer no relacionamento carnal. Os anos foram passando e, lentamente, como o seu sinuoso traço longilíneo na folha de papel branca, o gosto pela arte de Crepax foi-se insinuando como um fio de arame que nos atravessa a carne, sinuosa, ferina, comoventemente bela, foi-se entranhando como um fogo, uma secreta paixão. Aproveitei as idas e a vivência em Itália para o conhecer melhor.


Justine


Recordo-me da Helen, a americana louca de olhos azul magiar na pele cobreada da Califórnia. Estavas a começar a vida como actriz depois de anos de estudos de arte dramática e workshops marados e tinhas ido a Roma com uma amiga passar uma semana numa dessas coisas de trocar de casa por um período determinado e cuja única designação apropriada poderia ser Swing imobiliário. Sei que te desejei ao ver-te atravessar Campo di Fiori e passar em frente de Giordano Bruno, depois viras-te para a fonte, ultrapassaste as últimas barracas do mercado da fruta e dirigiste-te para a esplanada. Olhei para Donato, o único funcionário em sistema de acumulação com as funções de sonhador, proprietário, idealista, louco e excelente amigo, peguei na travessa, pisquei-lhe o olho. Ele sorriu com um sorriso cumplicemente matreiro e sedutor da Basilicata e encostou-se ao balcão com um ar muito profisional. Aproximei-me admirando-te os ombros morenos e adivinhando-te a nuca por debaixo dos caracois negros; depois, passando-te pela esquerda, sorri com olhos de carneiro mal morto e abordei-te em italiano. Tu nada percebeste o que não me surpreendeu grandemente, uma vez que era uma daquelas americanas flacidamente DOC e com aquele colocar a boca de lado ao falar e umas madeixinhas cor de rosa que funcionavam como certificado de origem controlada quem se sentava a teu lado. Passei rapidamente para inglês, de uma sonoridade britânica de tipo tradicional que muito te encantou. Sobre a pele lisa, recortados pela penunbra de um lápis sinuoso e longilíneo como o de Crepax, os teus olhos brilhavam de prazer. E servi-te com prazer, e indiquei-te bons itinerários e coisas curiosas em Roma, e juntos fizemos longas caminhadas na noite de Roma, por entre casas e becos obscuros onde se esconde a magia de uma história de grandeza e dor, e muitas foram as conversas tidas ao longo da semana que passamos juntos. Soube que tinhas pago os cursos a dares chibatadas nos rabinhos de uns velhinhos simpáticos de Hollywood e, no último dia, ofereci-te um poster com a capa de Valentina.



Valentina


Adoraste e estendeste a cabeça para me dar um beijo no momento em que as portas do comboio que de Roma Ostiense te iam levar a Fiumicino se fechavam. Forcei as portas, recolheste a cabeça e o pescoço marcado por um longo rubor onde, como nos teus olhos sonhadores, se lia estilo, prazer e dor.
Voltei de Itália e tenho notado que, em Portugal, Crepax continua a ser um quase desconhecido. Por essa razão, por querer partilhar o gosto e difundir a obra de um dos melhores desenhadores italianos do século XX vou aqui transcrever a homenagem que, por altura do falecimento de Guido Crepax (31/07/2003), Sidney Gusman publicou na publicação online brasileira Notícias Quadrinhos. As fotografias serão inseridas nos locais respectivos ao correr do texto e, sempre que possível, mantendo a formatação original. O original encontra-se no seguinte endereço:

http://www.universohq.com/quadrinhos/2003/n31072003_07.cfm

a data de acesso é a data deste post e não me está a apetecer partir a carola com meta-informação e com o Dublin Core. Por isso, eis o texto:

Valentina e seus fãs estão órfãos: Guido Crepax morreu


Guido Crepax e Valentina


As belas Valentina, Anita e Bianca estão vestindo preto! Morreu hoje, em Milão, Itália, o desenhista Guido Crepax. Ele havia completado 70 anos no último dia 15 de julho. O funeral será realizado sábado, no cemitério Monumentale.

Crepax nasceu em Milão, em 1933. Ao vir ao mundo, seu sobrenome era Crepas, mas depois de iniciar sua vida profissional decidiu trocar o "s" pelo "x", por uma questão estética. Formou-se em arquitetura em 1958, mas começou a viver de seus belos traços cinco anos antes, na área da publicidade e fazendo capas de livros e discos. Chegou até a ganhar uma Palma de Ouro, em 1957, com uma campanha para a Shell.


Louise Brooks é a inspiração para o visual de Valentina


Em 1959, iniciou sua longa colaboração para a revista científica mensal Tempo Medico, para a qual fez mais de 200 capas. Em 1965, passou a ilustrar um quiz médico chamado Clinicommedie (escrito por "Mister Hyde" e Pino Donizetti), que foi sua primeira experiência utilizando a linguagem dos quadrinhos.

Ainda em 1965, no mês de maio, ocorreu sua estréia efetiva nas HQs, nas páginas da Linus, famosa revista de Giovanni Gandini e Ranieri Carano (e depois de Oreste Del Buono e Fulvia Serra), para a qual criou o crítico de arte e investigador Philip Rembrandt, também conhecido como Neutron.

A coadjuvante de Neutron era sua namorada (com quem acabou casando), uma belíssima e curvilínea fotógrafa chamada Valentina. E ela mudou o rumo da série e da carreira de Crepax, tornando-se a protagonista das histórias e a mais importante personagem dos quadrinhos eróticos em todos os tempos.

Valentina foi criada à imagem e semelhança da atriz Louise Brooks, de quem Crepax era fã. Publicada em vários países do mundo, a personagem tem vários álbuns compilando suas aventuras. Com uma mescla de erotismo e devaneios, ela povoou o imaginário masculino por décadas, especialmente na Itália.


Valentina, da editoa L&PM


O sucesso de Valentina ainda hoje é tão grande, que suas histórias estão sendo reelaboradas, roteirizadas e filmadas para uma série de 13 episódios televisivos, que serão exibidos na Itália, Alemanha, Suíça e Estados Unidos.

Depois de Valentina, Guido Crepax deu vida a muitas outras "musas de papel", como Anita, Bianca e Belinda, além de assinar sofisticadas versões em quadrinhos de clássicos da literatura erótica, como A História de "O", de Pauline Reage; Emmanuelle, de Arsan; e Justine, de Sade. Também fez releituras de clássicos como Conde Drácula, Doutor Jekyll e Mister Hide e Frankenstein, seu último trabalho publicado, em 2002.


Valentina é beijada pelo Fantasma num dos delírios da personagem


Mesmo enquanto esteve envolvido com os quadrinhos, o autor não abandonou a atividade de ilustrador publicitário, na qual atuou até 1991, fazendo campanhas das mais variadas. Artista extremamente versátil, Crepax também assinou centenas de litografias, serigrafias e aquarelas.

Sempre explorando requintes de sadomasoquismo, Crepax foi considerado, durante muitos anos, o "papa" dos quadrinhos eróticos, posto que passou ao também italiano Milo Manara. Com um traço extremamente delicado, um incrível domínio de luz e sombras e diagramações pra lá de ousadas, suas páginas eram autênticos delírios visuais.


Última exposição de Crepax, em Milão


No Brasil, especialmente durante as décadas de 1980 e 1990, os leitores tiveram a sorte de ver muitas de suas obras. A Martins Fontes publicou A Vênus das Peles, Emmanuelle, Justine, Conde Drácula e Doutor Jekyll e Mister Hide.

Já a gaúcha L&PM lançou A História de "O", Valentina, Valentina Assassina?, Valentina de Botas, O Bebê de Valentina, Valentina no Metrô, Anita - Uma História Possível, Anita ao Vivo, Bianca - Casa das Loucuras, Bianca - Pensionato de Moças, além de participar da coletânea Casanova.


Última exposição de Crepax, em Milão


No entanto, uma de suas obras mais maduras, Lanterna Magica, de 1979, que não tinha um balão de texto sequer, continua inédita por aqui, apesar de ter sido publicada em quase toda a Europa.

Crepax chegou até a fazer duas edições para a Cepim, hoje mundialmente conhecida como Sergio Bonelli Editore: L'uomo de Pskov (1977) e L'uomo di Harlem (1979), ambas na coleção Un Uomo Un'avventura.

O jornal italiano Corriere della Sera disponibilizou em seu site fotos e vídeos da última mostra do artista em Milão. Vale a visita! Afinal, cada vez que se vir um desenho de Valentina, Anita, Bianca ou de qualquer outra de suas sedutoras mulheres, Guido Crepax certamente sempre será lembrado.


Valentina triste


As seguintes figuras apareciam numa barra paralela ao texto:


Conde Drácula, de Crepax. publicado no Brasil pela Martins Fontes



Edição italiana de Frankenstein



Anita: uma história possível



Circuito Interno, da Tempo Médico, uma edição de 1977. Compilava as 80 primeiras histórias da Clinicommedie, publicadas de Janeiro de 1965 a Maio de 1973. Uma raridade.



Capa assinada por Crepax




Ilustração de Guido Crepax


Ilustração de Guido Crepax

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