terça-feira, janeiro 30

Homenagem sentida



David, perdoa-me por te tratar por tu, eu que não sou mais do que uma sombra pálido no claro-escuro de Caravaggio que tu representaste na Cultura Portuguesa.
David, em tempos prometi que publicaria um estudo sobre ti. Desculpa se ainda o não fiz mas sinto-me incapaz, volvidos tantos anos, de o fazer. E no entanto, a recordação daquelas tardes na Gulbenkian, das conversas a perder de vista, dos breves instantes que eram aquelas tardes em que, aluno do I ano de Português Francês, Te ouvia, inebriado pela profundidade e sensibilidade, em que os Dias não eram horas mas segundos, acompanha-me ainda.
Esta é a homenagem que te presto. A homenagem de alguém que nunca conseguiu ser nem sequer a sombra da Tua Sombra.
Por tudo aquilo que me deste, pelas tuas palavras, incentivos, gentileza, disponibilidade, sensibilidade, humanismo, profundidade: OBRIGADO!

Ricardo Cerveira de Abreu Castelo Branco

Antologia pobre de um Poeta rico


E POR VEZES

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.

A secreta viagem

No barco sem ninguém ,anónimo e vazio,

ficámos nós os dois ,parados ,de mão dada ...

Como podem só os dois governar um navio?

Melhor é desistir e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,

tornamo-nos reais,e de maneira,à proa...

Que figuras de lenda!Olhos vagos,perdidos...

Por entre nossas mâos , o verde mar se escoa...

Aparentes senhores de um barco abandonado,

nós olhamos,sem ver,a longínqua miragem...

Aonde iremos ter?- Com frutos e pecado,

se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.

O resto passa ,passa...alheio aos meus sentidos.

-Desfeitos num rochedo ou salvos na ensseada,

a eternidade é nossa ,em madeira esculpidos!


PARAÍSO

Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.


A Boca as Bocas

Apenas
uma boca. A tua Boca
Apenas outra , a outra tua boca
É Primavera e ri a tua boca
De ser Agosto já na outra boca

Entre uma e outra voga a minha boca
E pouco a pouco a polpa de uma boca
Inda há pouco na popa em minha boca
É já na proa a polpa de outra boca.

Sabe a laranja a casca de uma boca
Sabe a morango a noz da outra boca
Mas sabe entretanto a minha boca

Que apenas vai sentindo em sua boca
Mais rouca do que a boca a minha boca
Mais louca do que a boca a tua boca.


Alvorada

E de súbito um corpo!
Alvorada sombria,Alvorada nefasta envolta nuns
cabelos.....Eram negros e vivos. Quem sofria,Só de
vê-los?Eram negros; e vivos como chamas.Brilhavam,
azulados sob a chuva.Brilhavam, azulados, como
escamasDe sereia sombria, sob a chuva...Veio cedo
de mais a trovoada:O vento me lembrouDe quem
eu sou.- Alvorada suspensa! Contempladapor
alguém que chegou a uma sacadae à beira da varanda
vacilou.



Alvorada

E de súbito
um corpo! Alvorada sombria,
Alvorada nefasta envolta nuns cabelos.....
Eram negros e vivos. Quem sofria,
Só de vê-los?

Eram negros; e vivos como chamas.
Brilhavam, azulados sob a chuva.
Brilhavam, azulados, como escamas
De sereia sombria, sob a chuva...

Veio cedo de mais a trovoada:
O vento me lembrou
De quem eu sou.
- Alvorada suspensa! Contemplada
por alguém que chegou a uma sacada
e à beira da varanda vacilou.



As últimas vontades

Deixa ficar a flor,

a morte na gaveta,

o tempo no degrau.

Conheces o degrau:

o sétimo degrau

depois do patamar;

o que range ao passares;

o que foi esconderijo

do maço de cigarros

fumado às escondidas...

Deixa ficar a flor.

E nem murmures.Deixa

o tempo no degrau,

a morte na gaveta.

Conheces a gaveta:

a primeira da esquerda,

que se mantém fechada.

Quem atirou a chave

pela janela fora?

Na batalha do ódio,

destruam-se,fechados,

sem tréguas,os retratos!

Deixa ficar a flor.

A flor? Não a conheces.

Bem sei.Nem eu.Ninguém.

Deixa ficar a flor.

Não digas nada.Ouve.

Não ouves o degrau?

Quem sobe agora a escada?

Como vem devagar!

Tão devagar que sobe...

Não digas nada.Ouve:

é com certeza alguém,

alguém que traz a chave.

Deixa ficar a flor.



Canção amarga

Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
--- Importa amar, sem ver a quem...
Ser mau ou bom, conforme os dias.

Agora, tu só entrevista,
quantas imagens me trouxeste!
Mas é preciso que eu resista
e não acorde um sonho agreste.

Que passes tu! Por mim, bem sei
que hei-de aceitar o que vier,
pois tarde ou cedo deverei
de sonho e pasmo apodrecer.

Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
--- Importa amar, sem ver a quem...
Ser infeliz, todos os dias!


Blocos

É isto vivemos dentro

de grandes blocos de gelo

sem aquecermos ao menos

com os dedos outros dedos

No fundo de nós temendo

que um dia se quebre o gelo


Inscrição Sobre As Ondas


Mal fora iniciada a secreta viagem,

Um deus me segredou que eu não iria só.



Por isso a cada vulto os sentidos reagem,

Supondo ser a luz que o deus me segredou.



A Secreta Viagem


No barco sem ninguém, anónimo e vazio,

ficámos nós os dois, parados, de mão dada…

Como podem só dois governar um navio?

Melhor é desistir e não fazermos nada!



Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,

Tornamo-nos reais, e de Madeira, à proa…

Que figures de lenda! Olhos vagos, perdidos…

Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa…



Aparentes senhores de um barco abandonado,

nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem…

Aonde iremos ter? – Com frutos e pecado,

Se justifica, enflora, a secreta viagem!



Agora sei que és tu quem me fora indicada.

O resto passa, passa…alheio aos meus sentidos.

- Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,

A eternidade é nossa, em Madeira esculpidos!



Pele


Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele


Casa


Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.

Era pior que a morte o que antevi:

era a dor de ficar sem sepultura.



Bebi entre os teus flancos a loucura

de não poder viver longe de ti:

és a sombra da casa onde nasci,

és a noite que à noite me procura.



Só por dentro de ti há corredores

e em quartos interiores o cheiro a fruta

que veste de frescura a escuridão…



Só por dentro de ti rebentam flores.

Só por dentro de ti a noite escuta

o que sem voz me sai do coração.


«Nem bibliófilo, nem bibliómano:»

Nem bibliófilo, nem bibliómano:

apenas um tudonada bibliófago.

Ou, mais propriamente, verbívoro.




Certidão De Nascimento

Tão regaço estas arcadas
Tão de brinquedo os eléctricos

Vejo a cidade parada

no ano de vinte e sete

Dela por vezes me evado

mas sempre a ela regresso

Bem sei eu que não desato

o cordão com que me aperta

Vejo seus gestos de grávida

medidos cautos imersos

nessa jovem gravidade

que só grávidas conhecem

Que frescor de madrugada

no terror com que me espera

Mães têm sempre a idade

que em sonho os filhos decretam

Recordo melhor a data

Até mesmo a atmosfera

É o dia vinte e quatro

de um mês a tremer de febre

com armas grades e o rasto

de um sangue que nunca seca

Só seis decénios passaram

rápidos como seis séculos

Tão pouco Mas neles cabem

cidade arcadas eléctricos

nesta imensa claridade

irmã gémea do mistério



Reinscrição sobre as Ondas



Só comigo me encontro enquanto me concentro

nas ancas de Afrodite ou nos olhos das Parcas

Mas sei que sou assim desde há imenso tempo

mal fora iniciada a secreta viagem.


Ode À Música


I


É como se tivesses mãos ou garras
milhões de dedos braços infinitos

É como se tivesses também asas

libertas do minério dos sentidos

É como se nos píncaros pairasses

quando nas nossas veias é que vives

É como se te abrisses – ó terraço

rodeado de abutres e raízes –

sobre o perene pânico dos astros

sobre a constante insónia dos abismos

E é como se te abrisses e fechasses

sobre a antepalavra do Espírito

É como se morresses quando nasces

É como se nascesses quando expiras


II


Ó claridade Ó vaga Ó luz Ó vento
que no sangue desvendas labirintos

Ó varanda no mar sempre Setembro

Ó dourada manhã sempre Domingo

Ó sereia nas dunas irrompendo

com as dunas e o mar se confundindo

Ó corpo de desperta adolescente

já no centro de incógnitos caminhos

que por fora te aceitas e por dentro

pões em dúvida o sol do teu fascínio

Ó dúvida que avanças mas por entre

volutas de pavor que vais cingindo

Ó altas labaredas Ó incêndio

Ó Musa a renascer das próprias cinzas



III


Só tu a cada instante nos declaras
que renegas a voz de quem divide

Que a única verdade é haver almas

terrível impostura haver países

Que tanto tens das aves o desgarre

como o expectante frémito do tigre

tanto o céu indiviso que há nas águas

quanto o múltiplo fogo que há no trigo

Que és igual e diversa em toda a parte

Que és do próprio Universo o que o sublima

Que nasces que te apagas que renasces

em procura da límpida medida

Que reges o mais puro e o mais alto

do que Deus concedeu às nossas vidas


Capital


Casas, carros, casas, casos.

Capital

encarcerada.



Colos, calos, cuspo, caspa.

Cautos, castas. Calvos, cabras.

Casos, casos… carros, casas…

Capital

acumulado.



E capuzes. E capotas.

E que pêsames! Que passos!

Em que pensas? Como passas?

Capitães. E capatazes.

E cartazes. Que patadas!

E que chaves! Cofres, caixas…

Capital

acautelado.



Cascos, coxas, queixos, cornos.

Os capazes. Os capados.

Corpos. Corvos. Copos, copos.

Capital,

oh! Capital,

capital

decapitada!



Fim De Estação


E pronto Pouco a pouco vou perdendo
o gosto de nadar debaixo de água

as ganas de amar quatro ao mesmo tempo

as garras de agarrar quem não me agarra



Mas vou ganhando aos poucos o silêncio
que por dentro da noite a noite rasga.



Ar De Itália


Mesmo que seja só de passagem
esta é a brisa que me renova



Ou me dá forças para a passagem

do que no fundo não se renova


Veneza


De cada vez que te busco
sei do que venho ao encontro



Como se fosses o útero

de onde hei-de nascer de novo



Corpoema


Das sílabas a espátula
começa pouco a pouco



a modelar-te em alma

o que era apenas corpo



De sílabas a estátua

De lâminas o sopro



O que era apenas alma

volve-se agora corpo



A Um Corpo


IX


Só às pálpebras cabe
a última palavra



na conversa travada

entre os olhos e a tarde


Os Remos


Que rumor de remos
De que negra barca



Ouve-se tão perto

sem se ver a água



Vem Caronte ao leme

Ou tudo uma farsa



que ninguém encena

que ninguém aplaude



Em torno parece

adensar-se o nada



O que mais inquieta

já não tem palavras



Mas ainda resta

saber de que margem



ouvimos os remos

não vemos a água


A Isadora Duncan


Nasci quando morreste.

Por isso trago a nostalgia

Dos movimentos puros que tiveste.

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