quinta-feira, janeiro 18

A Escola

O despertador tocou encontrando-o já desperto como nos últimos trinta anos. Eram tantos os anos que acordava à mesma hora que lhes tinha perdido a conta; no entanto, o despertador permanecia como um referente inútil na sacralidade ritual dos gestos do seu quotidiano. Um dia-a-dia feito de levantar-se depois de uma aurora sem sono, agarrar nos mesmos apontamentos, ir para a escola, debitar com voz monocórdica as mesmas lições de uma geografia monótona e cartácea que nunca tinha visto como um Emilio Salgari sem magia, fumar silenciosamente o seu cigarro durante os intervalos e voltar para casa onde, depois de arrumar as fichinhas da lição do dia e de uma chávena de chá com uma mão-cheia de biscoitos secos, se deitava. Todos os dias olhava nos olhos os alunos que, entre o temor e a irreverência, o fitavam com ânsia. Começavam sempre o ano com a ânsia própria de quem não sabe o que o espera enquanto ele apenas pretendia que o dia escorresse lentamente entre a capital de um país asiático e as monoculturas do México. Com uma maior frequência do que o bom-gosto, a decência e a correcção podiam causar um político decretava a mudança da forma de ensinar e ele lá tinha que dar saltos mortais para iludir as controleiras das comissões pedagógicas e restante gado de bico. Todos os anos entavam classificar a nova geração como um modelo genético de ignorância. Não importava tanto que se formassem inteiras gerações de ignorantes e/ou de irresponsáveis, o importante era que um obscuro politiqueiro que se tinha visto promovido a ministro por obra sem graça do Espírito Santo de Orelha e do Compadrio podesse apresentar sempre novas estatísticas que demonstrassem o elevado grau de literacia e a cultura profunda da população juvenil. Todos os anos tinha de fazer de peão neste jogo sujo. Já nem ligava e deixava escorrer torrentes de ignorância com a mesma naturalidade com que recebia o vencimento. ao fim e ao cabo, de nada lhe servia revoltar-se, o ir contra a corrente era inútil e contrário ao seu carácter dócil e acomodatício. O mais importante era ir vivendo sem perturbar demasiado a tranquilidade da sua rotina. Uma rotina sempre igual, feita de gestos imutáveis e eternos, precisa como o vinco das calças e estreita como a gravata que todas as manhãs fazia deslizar à volta do pescoço qual nó de forca perenemente adiada.
Levantou-se, lavou-se, barbeou-se, saiu, tomou o pequeno almoço entre o café e os cumprimentos do costume, apanhou o eléctrico e chegou à escola. Viu os contínuos que os saudavam com uma ligeira inclinação de cabeça enquanto os estudantes, escondidamente, se riam dele. Fumou o seu cigarro sem filtro e, ouvindo o toque, entrou na sala de aulas e deu com um silêncio que, de inesperado, o fez estremecer. Em vez das turmas barulhentas que habitualmente o acolhiam, sentiu o peso enorme do silêncio que durou alguns segundos: apenas o tempo de poisar a bolsa de pele onde a plaina do tempo já tinha feito sentir os seus efeitos, olhar os alunos nos olhos e, quando se preparava para começar a falar dos ciclos económicos do Brasil, receber um longo aplauso. Viu entrar a Presidente do Conselho Directivo, as autoridades escolares, os contínuos, os papás perenemente babados dos seus rebentos e o ambiente da sala aqueceu. Permaneceu mudo. Não percebia o significado de tudo aquilo. Ouviu a Presidente que começava uma longa e enfadonha ladaínha sobre o duro mester de se ser professor, sobre a falta de condições de trabalho, sobre o sentido missionário do dever, sobre o não reconhecimento da categoria profissional como devia ser, entre outros clichés que conseguiu reter antes de cair num estado de torpor geral. Foi arrancado desta espécie de catalépsia por um longo aplauso: a Presidente tinha acabado! Viu os colegas que se aproximavam e o felicitavam e só então percebeu que aquele era o seu último dia como professor e sentiu-se só.
Durante anos tinha sonhado com aquele dia e, agora, uma vez chegada a hora, sentia-se deprimido. Apercebia-se agora que toda a sua razão de ser tinha desaparecido. Não tinha com que passar os seus últimos dias. Não tendo nunca cultivado amores ou amizades não sabia com quem falar ou partilhar a velhice. Não possuia outros interesses: os culturais esgotavam-se nas suas notas para as lições, os afectivos nunca os tinha conhecido. Comeu, com uma certa náusea, uma fatia do doce que premurosamente lhe ofereciam e agradeceu timidamente fitando o chão. Depois, recolhendo-se num mutismo de bivalve, sentou-se e esperou pelo fim das comemorações. Saiu da escola com a coluna ainda mais inclinada do que de costume e caminhou sem destino através das ruas da cidade. Voltou a cair em si quando a noite já era senhora e encaminhou-se para casa. Nunca como agora tinha sentido a casa tão vazia. Preparou a habitual chávena de chá, jantou, preparou um banho quente, desligou o despertador e entrou na banheira. As primeiras luzes da aurora iluminaram o seu rosto de uma palidez insólita no meio de uma banheira com laivos avermelhados.

1 comentário:

Sofia Freire d'Andrade disse...

Ricardo,
Bem...nem sei o que te diga, gostei mesmo muito deste texto, a maneira como adjectivas as frases dando caracteristicas com outros sentidos subtis, é muito bonito.
Achei tb um texto, como já ando a reparar em ti, que tem um pouco de fatalismo e exactamente como o outro texto, com um final revelador dessa caracteristica; sinto nos teus textos uma tristeza quase melancólica de quem vive essa tristeza numa aceitação sem queixumes, numa interiorização dos sentimentos pessoais, e tb uma crítica a nossa maneira de viver em "rebanho" (mas que é dificil de fugir, eu lá tento calçar os meus melhores ténis para a fuga perfeita).
Gostei muito, um beijo
Sofia