quarta-feira, janeiro 17

Blind Date - Encontro às cegas

À minha Avó e a minha Mãe que me ensinaram a escrever
tendo por única pedagogia o bom-senso


O espelho à sua frente reflectia a imagem de um homem satisfeito com a própria existência. Há algo de intimamente reconfortante numa cadeira de barbeiro. Não sei se se trata da sensação de omnipotência de poder rodar trezentos e sessenta graus ou da ergonomia da cadeira, mas, o que não oferece sombra de dúvida é que uma ida ao barbeiro traz serenidade à alma. Assim se sentia Hélio, vendo-se, sorridente e orgulhoso de si mesmo, entre os frascos de champô, as caixinhas de talco, as toalhas assepticamente dobradas e as ampolas suiças contra a queda de cabelo. Viu um véu branco passar à frente dos olhos enquanto uma fita era atada atrás do pescoço e bocadinhos de algodão se insinuavam nas frestas da camisa. Uma voz melíflua perguntou-lhe: «Que corte prefere?». Não respondeu. Outras ideias lhe acudiam ao espírito. Lembrava-se ainda da primeira vez em que, titubeante, tinha entrado numa agência matrimonial. Não que fosse um homem feio ou possuísse algum defeito genético, mas a sua timidez era proverbial e, quando uma mulher o interpelava, os suores frios, os arrepios, a pele de galinha e a gaguez tinham-se tornado num hábito. A voz fez-se sentir de novo: «Que corte prefere?». Respondeu vagamente e fechou os olhos enquanto as tesouras começavam o seu vaivém. À medida que as madeixas caiam lentamente no chão ele pensava de novo naquela ida ao alfaiate para fazer um fato. «Um homem de fato dá segurança às mulheres!», tinham-lhe dito na agência. Uma vez escolhidos a cor e o tecido, lembrava-se que o alfaiate, com um sorriso indecifrável, lhe tinha perguntado: «Que corte prefere?». Tinha preferido um corte prático que não fosse atrapalhar os seus movimentos já de sí ligeiramente desengonçados. As tesouras continuavam o seu trabalho enquanto ele sonhava com o desenvolvimento da jornada tão esperada. Tinha-se levantado, tinha ido ao talho comprar a carne para o assado do jantar, tinha voltado a casa com as compras e ido ao barbeiro. Veio-lhe à memória que o talhante lhe causara uma estranha impressão. Era-lhe difícil, a ele que era naturalmente tímido, ver um homem tão forte e com uma voz tão firme e segura de si. Recordava-se, com especial intensidade, do tom grave da voz quando lhe tinha perguntado. «Que corte prefere?». O barbeiro acabou o seu trabalho e Hélio saiu satisfeito com o seu aspecto.
Quando chegou a hora, dirigiu-se ao bar onde tinham combinado encontrar-se. Apresentaram-se com algum embaraço e fumaram para ajudar a derreter a timidez e o gelo que boiava dentro dos copos. Agradavam-lhe sobretudo os longos caracóis negros que, caindo lateralmente lhe cortavam a linha de ombros branca. Foram para casa. Uma vez sentados, Hélio perguntou-lhe se tomava algo. Ela anuio e escolheu uma bebida doce. Conversaram tranquilamente durante cerca de meia-hora. Ela perguntou se podia ir a casa de banho e Hélio aproveitou para abrir a garrafa de Bordeaux que tinha comprado na véspera. Voltou para a sala e esperou. Quando ela voltou Hélio encheu novamente os copos. Sentia a cabeça andar-lhe à roda. Não sabia se devia culpar o ambiente ou o álcool. Fumou outro cigarro para vencer o mal estar. A mão, no bolso, tocou o frio do aço da cigarreira. Aproveitou para servir o Bordeaux e voltou-lhe à memória a ida à enoteca. Não sendo um connaisseur pediu conselho ao empregado que, dando-se ares de sommelier, declarara em tom pretencioso: «Com um assado quer-se um bom vinho tinto! Um vinho encorpado e que aqueça! Como o sangue!». Levantou-se com um arrepio imprevisto e disse que ia à cozinha. Ela sorriu e aproveitou para lhe admirar os ombros. Hélio voltou à sala com a navalha subtraída no barbeiro e, com uma voz segura como a do talhante, perguntou-lhe: «Que corte prefere?».

1 comentário:

Sofia Freire d'Andrade disse...

Ricardo,
Como prometido, e a faltar ás minhas horas de trabalho, consegui agora com alguma calma ler este texto e... achei a descrição, do retrato psicológico dele e toda a situção, DELICIOSA, apenas esta palavra me assola a mente quando leio o que escreveste, áááá e claro com um final intencionalmente "desprevenido", com uma ponta de humor ne ranhura das palavras.
Um beijo grande e parabéns, gostei muito,
Sofia