domingo, novembro 12

Salmo por mais um Natal


Salmo por mais um Natal




Sentada em cima do plaid que a protege do frio e da humidade da charneca, Kathleen aguarda o regresso de Angus. Conhecem-se desde crianças, juntos percorreram as colinas do Eire, juntos se esconderam por detrás das sebes quando, no regresso das aulas, os unionistas os perseguiam, juntos nadaram nus, nas noites de plenilúnio, nos ribeiros do Conemara, juntos seguiram para Derry quando se casaram, juntos fizeram um filho que já morreu, juntos choraram sobre o corpo do filho morto por uma carga a cavalo, juntos leram a biografia de Michael Collins e jejuaram com Bobby Sands e, esperando o dia em que voltarão a seguir a estrada juntos, Kathleen vai-se cobrindo de verde como as pedras da charneca.
Victoria dá um último beijo à filha que a fixa com dois límpidos olhos de àgua onde apenas as leves estrias vermelhas que os raiam denunciam o estado de agitação que a percorre. Depois de a incitar a ter coragem e de lhe compor a fita vermelha com que prende os longos cabelos louros da filha, Victoria agarra na mão desta, respira fundo e, olhando fixamente um ponto imaginário diante de si, começa a caminhar com uma passada larga e decidida. Hellen vai acompanhando a mãe e, dando umas olhadelas furtivas, tentando descortinar o que a espera nos duzentos metros que se sucedem ao virar da esquina. A montra da padaria reflecte confusamente o avermelhado da aurora que se mistura com as luzes dos jipes do exército. Dobrado esse cabo que nunca viria a ser da boa esperança, começam a descer ao longo de um esófago de capacetes negros por detrás do qual se ouve o vozear ácido da multidão ensandecida. De repente voa uma garrafa... Sentada à frente da central telefónica, Hellen recorda entre lágrimas as últimas recordações do dia em que, à limpidez dos seus olhos de água, sucederam as profundidades dos abismos.
Ahmed olha o deserto diante de si e, por entre alguns goles que lentamente vai dando no seu chá de menta, poisa a mão no ombro de Youssuf, o seu filho mais novo, começa a falar de um dia, passados são já tantos anos, em que um homem louro entrou de rompante pela casa dos seus pais. Tinha sido empurrado de roldão para debaixo de uma cama de onde tinha assistido ao espancamento dos seus pais. Deitados no chão com os olhos vítreos em fácies tumefactos como a janela por onde vira os homens da aldeia serem obrigados a urinar para cima dos cabos descarnados da alta tensão. Youssuf não sabe ainda que, quando o sol descer no horizonte, homens velados entrarão em sua casa, há-de ver o seu pai espancado e decapitado e o sangue escorrer da garganta cortada de sua mãe violada em nome de um Deus ignoto.
Benjamin contempla os montes Golam através das grades da prisão. Médico de formação e humanista por vocação, viu a sua vida truncada pelo fanatismo dos pais e pela obrigatoriedade de prestar serviço nos colonatos. Viu crianças de pedras na mão e crianças incorporadas nas calçadas pelo rodado dos carros, pais que conduzem os filhos a tirar um derradeiro retrato com uma faixa verde na cabeça e um colete explosivo, e homens cujo desespero os leva à morte. Porque hebreu, lembrou-se de David e Golias e recusou-se a ser um filisteu. A lei de Moisés prescreve a defesa de roubar e de matar. Benjamin é levado a corte marcial por desobediência sem saber que, em retaliação ao enésimo raid sobre Jenin, um míssil do Hezbollah há-de atingir o pequeno posto militar onde se encontra detido.
Roque corre por entre os carros tentando não ser atingido. Leva na mão o berimbau e no olhar o pânico. Tinha acordado com sede e, no regresso da bica, assistira à chegada dos jipes da polícia. As brancas paredes da Candelária tingem-se de vermelho como um lençol nupcial arvorado em estandarte de uma virgindade perdida. Corre Roque! Corre...
Wang baixa-se e tenta esconder-se. O olhar vigilante e atento dos auxiliares varre a sala onde homens e mulheres, de branco vestidos, deambulam com um olhar perdido. Estudante universitário, Wang protestou e exprimiu o seu descontentamento. Depois da repressão, e por uma questão de coerência, não se refugiou num exílio dourado em Paris, nos Estados Unidos ou na Formosa. Wang esquiva-se, ou tenta fazê-lo, aos tratamentos prescritos com a convicção íntima de que só um louco ficaria a aguardar os militares em casa depois dos acontecimentos da Cidade Proibida.
Sebastião olha através da janela que alguém, piedosamente, colocou sobre o seu retrato. Lá fora, por entre as pedras brancas, a erva cresce e as flores teimam em despontar. Mas Sebastião apenas olha e já as não consegue cheirar. É um olhar vago e perdido como o daquele dia em que as tropas avançaram ensandecidas e a todos empurraram para os jardins da morte. E Sebastião aí ficou, testemunha e testemunho da vida passada, da morte presente e da vida que vai despontando em cada fio de erva e que pacientemente observa através da janela da sua lápide.
Steve vagueia pela cidade com uma manta pelas costas e uma garrafa de álcool metílico dentro do saco de papel. Lentamente, passo após passo, Steve desce a Vª Avenida e arrasta a sua miséria diante das opulentas ourivesarias da diáspora. Tem que ir às traseiras dos grandes armazéns recolher os cartões que o irão proteger da humidade da noite. Steve há-de morrer essa noite, como um monarca, deitado no colchão ortopédico de um passeio e tendo as estrelas por baldaquino; mas, ao contrário dos ourives, do seu leito de morte fitará o Infinito.
Mary-Lu vagueia por entre as ruas eufóricas de Pataya Beach. O olhar dirige-se implorante ao turista tentando esconder a sua idade avançada. Sabe que tem em casa uma família para sustentar e que, com dezasseis anos, já não é procurada como quando tinha treze. Um senhor de cabelos brancos, dólares na mão e passaporte australiano leva-a para um hotel. Nada lhe é pedido fisicamente e Mary-Lu sente-se amada por alguém que apenas lhe fala docemente ao ouvido. Diz-lhe que gosta dela, que ainda tem que resolver alguns assuntos mas que a quer levar, juntamente com a sua filha, para a Austrália. Mary-Lu separa-se do homem com um pequeno embrulho, um bilhete de avião para Sidney, algum dinheiro e um sorriso nos lábios sem saber que uma tal decisão a vai levar a uma vida escoada através das grades do Bangkok Hilton enquanto a sua filha irá engrossar os bordeis de Pataya.
Ramon segue vozeando no meio dos outros rapazes. A sua voz e a sua estatura conferem-lhe um estatuto de primazia entre os meninos da rua de Santiago. O bando, capitaneado por Ramon, dirige-se para o mercado. Lestamente, os bolsos vazios enchem-se de comida e as faces de sorrisos. Depois do pasto comum, Ramon afasta-se do grupo para que este o não veja chorar pelos pais que nunca conheceu.
Sentado por entre as pedras onde alguns fios de erva teimam em despontar, Tatonka olha para o avô. À volta destes o silêncio impera. De repente, evocados pela voz do ancião, o tropear de uma manada de bisontes atravessa as pradarias da alma, a erva viçosa verdeja após o degelo, a águia, mensageira do espírito, plana entre os deuses e os homens. Tatonka ergue os olhos e apenas consegue descortinar o voo espiralado de um abutre sobre a terra queimada da reserva.
Felícia segue o homem que a retirou do orfanato de Timisoara e a levou para Bucareste, com uma boneca nas mãos e um chupa-chupa na boca, sem saber que irá ser vendida pela melhor oferta a um mercador de escravas.
A paz ruidosa da floresta é abalada por um silêncio obscuro. Dois tiros secos prostram por terra Chico e a mulher. Sobre os cadáveres deixados insepultos pelos sicários dos fazendeiros do pantanal, a terra nunca possuída encarregou-se de edificar uma catedral verdejante.
Num cinema de Lisboa, um órfão é obrigado a praticar a felação. As famílias, bem pensantes e com a consciência tranquila, sorvem avidamente as imagens que alguns persistem em passar nas televisões.

MAGNIFICAT


Lisboa, 7 de Dezembro de 2002

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