quinta-feira, novembro 23

A lenda do Rei Pescador

Levantou-se e preparou-se cuidadosamente como convém a um homem de Igreja. O fato, de tons escuros, condizia com a solenidade hierática e severa das paredes do quarto despojado onde se encontrava. Uma cama escura encimada por um crucifixo cujo Cristo de madeira tinha passado à reforma e do qual só os três cravos ferrujentos guardavam a memória, uma cómoda alta de madeira que o tempo escurecera e um roupeiro a que faltava uma porta constituiam toda a mobília. Dirigiu-se à janela e banhou-se na luz branca e enevoada de um dia de Primavera. Abriu a janela e inspirou avidamente o ar sentindo-se estonteado com o formigueiro que este causou nas suas narinas habituadas ao bafio e ao mofo que escorriam pelas paredes e lhe invadiam o corpo e a alma. Voltou-se, caminhou alguns passos até à cómoda de onde retirou alguns chumbos de pesca de cinquenta gramas, fio de pesca, um par de tesouras, um martelo e um desses velhos estojos de óculos de plástico. Devidamente apetrechado voltou para a janela onde se entreteve a bater os chumbos até formar estreitas placas de textura irregular. Depois, com a ponta da tesoura, furou as placas e atou-lhes o fio de pesca de molde a que este conjunto caísse perpendicularmente desde o seu ombro até ao chão. Sorriu contente com o aprumo do utensílio. Sentou-se e roeu avidamente um resto de chocolate preto deliciando-se com o gosto amargo e espesso que este lhe deixava na boca. Após o breve repasto, recortou a bolsa de óculos de modo a que esta formasse um pequeno estojo para as placas de chumbo, após o que cobriu as placas de cola para ratos, guardou-as juntamente com um trapo velho e uma pequena garrafa de álcool, enfiou as chaves da mota no bolso e saiu de casa. Parou no jornal da vila para tomar um café e ler as secções dos jornais dedicadas ao crime e ao desporto. Pagou a conta e saiu sem ligar aos insinuantes e (e)ternos sorrisos da filha do dono do bar. Entrou na Igreja de São João Baptista enquanto o Padre pronunciava o derradeiro Ite missa est. Persignou-se devotamente e ajoelhou-se ao fundo por entre um grupo de beatas que manuseavam perpetuamente a mesma conta de um orgasmático rosário em histéricos delírios religiosos. A sua figura severa, circundada por xailes e mantilhas negramente curvados inseria-se sem destoar na hierática rigidez daquele eclesiástico recanto. Esperou pacientemente que o fadário do terço findasse e que as beatas se retirassem. Depois, com o ar grave que convém a um penitente, levantou-se e dirigiu-se ao Altar de Santa Rita de Cássia. Ajoelhou-se, persignou-se e, retirando os chumbos do bolso, escolheu o mais fino. O sacerdote saiu da sacristia e, reparando no recolhimento e na compustura do devoto, pensou que Deus, nas suas infinitas glória e misericórdia, não permitia que a religião e a devoção se extinguissem. E o chumbo lá ia descendo vazio e subindo até à ranhura carregado de notas. Os sinos da Igreja anunciaram uma nova missa pelo que abandonou a Igreja não sem antes se ter benzido e rezado uma oração pelas graças recebidas.
***
O Juíz, severo na sua toga, fitava-o com olhos críticos e voz grave e pausada. Eduardo manteve a compustura que o caracterizava e respondeu escandindo as palavras. Afirmou ser um homem de bem, temente a Deus e fiel aos princípios do novo catecismo e da reforma fiscal. Acrescentou ainda que, na estricta observância dos princípios religiosos e éticos que sempre o tinham norteado, nada mais pretendia do que proceder à retenção na fonte e cobrar a sisa devida sobre a compra de quartos no Paraíso. No fim de contas, não era no novo catecismo que o não pagar impostos era considerado um pecado?

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