domingo, novembro 12

O rio corria, imutável e contínuo, por entre as fragas ...

O rio corria, imutável e contínuo, por entre as fragas que, com uma solene tranquilidade, assistiam à sua passagem. A garganta, que ora se espraiava em amenos bosques de amieiros ora se estreitava em agrestes e abruptas penedias, era, de longe a longe, interrompida pelo doce remanso de uma levada ou pela oblíqua graça de um açude. João desceu o íngreme caminho que o conduziu a um pequeno recanto onde as águas eram mais profundas, estendeu a toalha, despiu-se, acendeu um cigarro e sentou-se gozando o sol e a brisa fresca que corria ao longo do vale. No ar pairava o perfume da resina dos pinheiros e o contínuo rumor dos insectos. De longe a longe, por entre os amieiros, descia um melro de água que, passando à tona da água, devorava, com fulmínea rapidez, alguns dos muitos insectos que evoluíam à superfície. Outras vezes, era o baque surdo provocado pelo salto de uma truta que vinha interromper os seus pensamentos. Por entre as ervas altas da margem passavam libélulas com reflexos azulados. Apagou a beata nas pedras e guardou-a numa pequena caixa metálica: a natureza não se compadecia com os seus públicos vícios e prazeres privados. Levantou-se e entrou lentamente na água. Enquanto os pés sentiam o contacto com os seixos e o areão do fundo, João sentiu o benfazejo prazer da água que lhe subia lentamente pelas pernas acima até à altura dos joelhos. Pequenos peixes afastavam-se ao mínimo movimento e voltavam curiosos quando ele parava e as suas pernas se assemelhavam a dois troncos parcialmente imersos. O sol tinha aquecido a água. Mergulhou e, com vigorosos movimentos circulares dos braços, passou rasante ao fundo que tão bem conhecia. Passou serpenteando por entre as pedras e emergiu um pouco mais adiante. Respirou e olhou o rio que, na sua placidez, transportava algumas folhas secas que volteavam como barcaças loucas num bailado dervixe para, logo à frente, onde o rio se estreita e ganha velocidade em pequenas cascatas e rápidos, mergulharem num verde e vítreo espelho que reflectia a ponte centenária de granito. Deixou-se levar pela corrente, juntamente com as folhas, enquanto boiava sob a volta majestosa da ponte. Gritou e gozou o eco da sua voz multiplicado pelo arco. Depois, com braçadas cadenciadas, dirigiu-se aos contrafortes da ponte e sentou-se no penedo que apenas emergia nos anos de menor caudal e contemplou os riscos esverdeados deixados pelas cheias dos Invernos passados. Alguns guinchos interromperam as suas contemplações. Voltou para a água e, nadando de costas, gozou o dúplice prazer que lhe proporcionavam a água fresca no dorso e o sol no peito. Subiu para a pedra e secou-se com a toalha. Olhou para a outra margem. Por entre os amieiros, duas gerações de emigrantes conviviam alegremente. Os progenitores iam pachorrentamente despejando cervejas em torno de um tacho dessa especialidade gastronómica de enfarta-brutos que dá pelo nome de macarrão guisado com chouriço de colorau. Os filhos, estranhas criaturas obesas oriundas de um bidonville do bacio parisiano, discutiam numa alegre algaraviada onde os dis donc conviviam joiosamente com uma forma de expressão capaz de fazer corar os menos pudicos chatos do mais sebento dos cavalos da GNR. Um rebento chapinhava na água enquanto guinchava estridentemente. A mãe, elegantemente vestida com um fato de banho de estranhas cores violáceas e umas sandálias verde alface de plástico transparente ― ambos comprados nos grandes magazinos ― gritou para a filha mais velha: ― “Virginie, faz atenção, olha que o Mathieu não sabe najar!” Esta última, entretida a comentar os saliências pudicas do primo Benoito com a amiga Aicha, enquanto devoravam alegremente um pacote de comida de plástico com aroma de batata, presunto, queijo, mentol e banana fez ouvido de mercador. ― “Virginie, ou fazes gafa ao teu fréro ou eu caço-te a gola!” ―: verberou, apoplética na sua flácida opulência de fémea bronca, a mãe. E Virginie lá deixou de olhar para as partes pudibundas do primo Benoito elegantemente contidas numa tanga para, de mau grado, ir buscar o irmão que, entretanto, tinha escorregado nos limos de uma pedra, gratado os chavelhos e aberto as goelas numa invulgar demonstração de poder vocal. João sentiu-se incomodado e tentou neutralizar o chinfrim com a audição das Variações Goldberg, servindo-se dos auriculares. Contudo, do outro lado do rio, um estranho aparelho com mais luzes do que uma árvore de Natal começou a poluir o ambiente com os últimos êxitos de um cantor pimba com nome de bola de rugby a que se seguiu um best of de Linda de Suza. Na ausência de Virginie, ocupada a dar bisous nos chavelhos do fréro, Aicha, como jovem liberada que era, ousou um topless onde o tchador se conjugava com a parte de baixo de um bikini colorido como a capa de um disco de música das Caraíbas em versão Sarcelles. Foi então que João, não sabendo se a náusea que o invadia era provocada pela descarga de uma suinicultura ou pela visão que o acometia, se vestiu e bateu em retirada. Pelo caminho encontrou um automóvel de enormes proporções com a bandeira da carbonária em volta dos encostos de cabeça e um terço pendurado no retrovisor. Subiu lentamente o caminho íngreme que o conduziu à velha casa de granito que, desde há três séculos, servia de abrigo e berço à sua família. Mudou-se, pegou na corrente que servia de trela a Gilda ― uma cadela enorme, fruto do cruzamento entre um pastor alemão e um serra da estrela ―, e foi passear com esta pelos pinhais. Enquanto voltava para casa, parou, fez algumas festas na cabeça da sua companheira e, de forma terna, disse-lhe: ― “Gosto de ti porque és autêntica!”. Ao fundo, no vale, o rio corria, imutável e contínuo, por entre as fragas que, com uma solene tranquilidade, assistiam à sua passagem.
Agosto de 2003

1 comentário:

Sofia Freire d'Andrade disse...

Uma reflexão e uma doce ternura, lindo!