segunda-feira, abril 16
Elegia do Intendente
Olhos verdes, pele bronzeada por gerações de nomadismo, cabelos louros pintados compridos sobre carnações pujantes. Por detrás do balcão serves, olhas, danças, mostrando uma deliciosa barriga e o oval perfeito do rosto a emoldurar condignamente um bem balanceado ondular dos seios refreados por uma camisola de malha preta justa ao torso. As calças justas moldam um corpo de jovem potra de olhar profundamente insondável onde se revela a graça de um trote como o remanso de um palheiro. Quantas vezes te vejo passar rápida, sumarentemente moldada na luz da porta por onde se entra neste tugúrio. Discreta na tua pujança atravessas a sala e lanças insolente um olhar onde a tudo se alude e nada se diz. De repente, pedes lume. Dou-te lume e aproveito para acender o meu cigarro sem que os nossos olhares se cruzem na sensual e mística sublimação de dois corpos que se analisam. Os lábios carnudos deixam ver um pouco dos dentes. Passas dançando num cadenciado ritmo bamboleante e logo te detens admirando, como uma criança, o efeito que causaste. Vens limpar a mesa em frente a mim, a camisola sobe revelando a suave curvatura de dois sulcos que te ladeiam a coluna perdendo-se na cintura generosamente baixa. Olhas e indagas num curioso convite ou num convite curioso. Levantas os braços e prendes melhor os cabelos que recolheras num fulgente e ondulado rabo de cavalo. Depois, dirisges-te à porta e danças. A pauta esgueira-se em curvas num quase imperceptível menear de quadris. E afinal tudo dura o átomo infindável de uma ilusão. A luz recorta-te o corpo na moldura da porta. Giovanni passa. Hoje orna a sua reluzente careca com um par de calças normais; porém, o teu ar de alien alheado mantem-se enquanto te diriges à minha mesa olhando gulosamente para a minha bolsa de tabaco. Coloco a caixa de mortalhas sobre a bolsa numa oferta tacitamente aceite. enrolas e sais sem dizer palavra. Chegando ao pé da porta, voltas para trás e pegas no isqueiro, acendes e voltas a poisá-lo sem fazer barulho. Depois eclipsas-te e de por hoje bastar-me-ão as tuas neuróticas e apressadas fugas nervosas ao longo da Rua do Bem Formoso. De costas para o balcão que se interpõe entre nós, absorta em qualquer tarefa obscura, observo-te a nuca onde uma penugem faz sombra, juntamente com alguns cabelos mais curtos que se escaparam ou qaue não conseguiste apanhar.
De longe a longe, a espaços, as mais estranhas toilettes sucedem-se num desfilar de tristes figuras de que prefiro alhear-me. Depois, acende-se o ritmo endiabrado de um Lee Scratch Perry e o pulso parte veloz ao galope como o teu corpo por trás do balcão finda que foi a tarefa de contar conscienciosamente um frasco de plástico repleto de moedas. Depois, o patrão veste o casaco e sai com o rosto sombrio que sempre lhe conheci. Um rosto de singalês de hábitos pelintramente azeiteiros como o da velha publicidade à Peugeot. O ar torna-se mais respirável, seguramente as curvas bombeantes de um bom baixo reggae foram salutares para a renovação da atmosfera. Giovanni aparece e olha, depois sai nervosamente apressado e sem destino. O patrão retorna e pede-te que me venhas pedir o isqueiro emprestado para enrolar uma broca na silenciosa hostilidade de quem, arvorando um sorriso sarnosamente manhoso, não é capaz de esconder o facto de não suportar a minha presença. Sabe que o desprezo e que me dá um gozo infinito chegar e, sentado, começar a escrever. Entretanto, vou fazendo a média de um café de duas horas e meia em duas horas e meia. Saber que isso te enfurece e que és suficientemente verme para estares calado é uma lição sobre a baixeza do ser. O teu sócio, sacana e inteligente em superior proporção, esconde-se atrás de um enigmático sorriso de esfinge. Tu, alheia aos ódios e velhos rancores de quem se enganou a considerar um cliente como certo e se viu desiludido nos consumos esperados, continuas na tua ondeante azáfama tentando demonstrar com o serviço o que não consegues com uma caixa que persiste em permanecer frugalmentwe recheada. De vez em quando, o teu olhar volta-se, inquiridor e felino como predador/presa que a caça busca. Sais por momentos para ires comprar comida feita que comes apressadamente na ânsia de satisfazer o apetite do corpo jovem e farto. Dá gosto ver-te comer, mastigando depressa, com as covinhas do rosto aos saltos. Já acabaste e agora rebolas-te à luz do sol que te recorta na moldura da porta a graça ondeante de jovem fémea.
Mantorras, que assim te chamam sarcásticos os que todos os dias contigo palmilham a Rua do Bem Formoso, foi a casa do irmão e negociou a barrela quinzenal por uns fartos litros de vinho do discount. Ei-lo que passa, lavado, com um malhão de lã imaculadamente branco, uns jeans lagos e o sebento chapéu de lona que sempre lhe conheci. Não vai só porém, na mão leva a tinta companhia de um tijolo. Pouco depois comparece a galeria sexual do bizarro sob as formas de um jockey mamalhudo. Entra, olha em redor e sai com o passo bamboleante de anã. Depois o momento interrompe-se com a audição de Stop that train em versão dub e logo se volta à pureza de um Peter Tosh com a rudeza de um Johnny be good. As meninas nigerianas ouvem-se ao longe com o seu gralhar pitoresco. Depois entra o solo de guitarra e vejo-me preso nas evoluções para logo ser interrompido pela voz de Tosh que me retorna a uma realidade feita de rude brutalidade quotidiana e solos de guitarra. Vejo, com divertida surpresa, que desde a última rusga da polícia afixaram um icónico e colorido Proibido fumar charros e que, ao abrigo das leis sobre a acessibilidade, o fizeram acompanhar da mensagem escrita. Lembro-me dos ingleses olhando, do Tejo, uma Lisboa reconstruida em cénicas fachadas atrás das quais se escondem os escombros do terramoto e penso no que tudo isto tem de ilusório.
E o circo recomeça, no seu vaivém apressado de gente que sobe e volta a subir as mesmas escadas com a mesma pressa e diferentes mãos que as empurram por trás. Outros recolhem placidamente os proventos com que fazem apostas à bola no bilhar do salão de jogos da esquina.
Um subúrbio de Kingston implantado no seio de Lisboa onde se vê a brutalidade de uma vida que não escolhe continentes. E o reggae continua com a dureza de um sofrimento e de uma discriminação. Os excluídos passam por aí num vaivém que, melancólico e triste, observo e registo...
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