segunda-feira, dezembro 24

História de um gatarrão que miava grosso e de uma gatinha fulva que o ensinou a amar

Era uma vez uma gatinha fulva que andava a passear. Caminhava, de passo ligeiro e olhar sedutor, por entre as pessoas que a viam passar e não se apercebiam de quem ela realmente era nem do que lhe ia na alma. Sim, porque os gatos, ao contrário do que os burros dos humanos pensam, possuem uma alma. E lá ia ela, muito coquette, pelas ruas, muito senhora do seu narizinho rosado.
Mas, apesar de ser muito bonita, a gatinha tinha um dilema interior que, de tempos a tempos, a amargurava: tinha conhecido um gatarrão muito giro, um bocado marcado por cicatrizes da vida mas sem juízo nenhum. Tinha uns olhos grandes e verdes, o pelo meio encrespado e castanho e era alto e escanzelado como só os gatos vadios conseguem ter. E a gatinha gostou dele. Aproximaram-se, lamberam-se e lá foram os dois miar muito contentes para um telhado da Estefânia. Mas o gatarrão miava, miava e as mais das vezes não dizia nada que jeito tivesse. E a gatinha disse-lhe:
−− Então! Tu mias bem, és giro, lambes-me bem o pescoço e mordiscas bem as minhas orelhinhas, mas um gato tem de ser mais adulto ou eu farto-me dele. Se tu fizesses psicoterapia felina talvez conseguisses estar mais centrado e não miar tanto quando vais à caça!
−− Pois é minha gatinha, mas eu passei a vida a miar grosso e tenho dificuldade em deixar de o fazer. Eu bem tento, faço um esforço, mas de vez em quando lá escapa um daqueles miados que espantam a caça e te assustam.
A gatinha ouviu as lamentações do gatarrão que, apesar de ser grande era um bocadinho lamechas, e depois disse:
−− Ó meu gatarrão, tu tens de ver como eu me sinto! Eu gosto muito de ti mas é um pouco como se tivesse o coração partido ao peito. Uma parte de mim gosta muito de ti, a outra acha que nunca conseguiremos ser felizes assim e enquanto tu não achares a outra parte do meu coração acabaram-se as lambedelas ao longo do pelo, as sinfonias de miados em conjunto e passa a um sistema de serviços mínimos nos afectos. Só levas us ronrons de vez em quando e já é uma sorte!
O gatarrão ainda tentou argumentar, protestou, miou grosso mas nem se atreveu a deitar as unhas de fora porque sabia que a gatinha tinha razão. E tomou uma decisão:
−− Vou fazer-me à vida!
A gatinha tinha as suas dúvidas mas decidiu dar um voto de confiança. Assim, disse, com um ar muito responsável e sedutor, ao seu gatarrão:
−− A ver vamos mas se não cumpres vou ficar fria como a ponta do meu narizinho e sempre que te aproximares de mim levas uma unhada.
O gatarrão espirrou, espreguiçou-se, arqueou as costas e lá foi à procura da outra metade do coração da gatinha.
No primeiro dia trouxe-lhe uma espinha de chicharro.
A gatinha olhou, cheirou a espinha, franziu o nariz e disse que ele se tinha de esforçar mais.
O gatarrão voltou a sair e, desta vez, trouxe-lhe um ratinho de brinquedo.
Entrou em casa todo ufano, mostrou o ratinho de corda e a gatinha, para grande espanto seu, torceu o nariz e disse:
−− E o que é que eu faço com isso? E deu-lhe mais uma unhada nas ventas antes de se afastar.
O gatarrão, que já não percebia nada, ainda protestou:
−− Não é justo! Um dia trago-te uma espinha de chicharro e apanho com uma unhada, no dia seguinte um ratinho de brincar e volto a apanhar na trombeta! E pensou consigo mesmo que assim não valia e que a gatinha tinha era vontade de acabar com ele. Ficou um bocado a lamber as feridas, enroscou-se e, após uma largas horas (sim, porque o gatarrão era um bocado para o burrote e precisava de pensar bastante tempo), lá chegou à conclusão que a gatinha não queria nem comida nem jogos e que, se calhar, o mais importante era miar menos e dar mais miminhos à gatinha. Aproximou-se da gatinha,lambeu-a, mordiscou-lhe o pescoço e, nessa noite, foi-se deitar com a gatinha em vez de andar à cata de espinhas e de jogos estapafúrdios.
A gatinha ronronou, gostou das atenções, voltou a miar em conjunto e só então o gato percebeu que sabia qual a outra metade do coração da gatinha que faltava. No início tinha-lhe encontrado a paixão, agora tinha de lhe dar a constância na atenção.
E lá se resolveu o problema.
Quem passar pela Estefânia e vir uma gatinha de patinha dada a um gatarrão que se lembre desta fábula e siga o exemplo dos dois gatos.
Só não digo que viveram felizes para sempre porque esta história ainda não acabou e como o gatarrão é um bocado para o burrote de vez em quando ainda merece apanhar umas unhadas na ponta do nariz.

Natal de 2007

2 comentários:

Sofia Freire d'Andrade disse...

Amo-te, meu gatarrão lindo, inteligente, carinhoso, criança, bom, doce, fizeste-me voar, amar, nas asas da tua alma.
Meu muito AMOR :)

Sofia Freire d'Andrade disse...

Por favor escreve mais! estive a ler textos antigos teus e realmente só uma coisa me passa pela cabeça, porque não escreves mais????
Mais contos, mais devaneios, mais textos, mais alma, mais fúria, mais desconcerto, mais indignação, mais doçura, mais amor, mais revelação, mais mais mais mais...
Queria que visses através dos teus textos a grandeza que vai na tua alma, não sei se vês... se visses só terias uma saída ESCREVERIAS MAIS PARA NÃO TE PERDERES